É dramático o momento do mercado editorial brasileiro. As duas maiores redes de livrarias do país, a Saraiva e a Cultura, que, juntas, respondem por cerca de 40% das vendas de livros (ficção e não ficção), estão em gravíssima crise financeira. E a derrocada de ambas ameaça levar junto uma parte das editoras, com consequências negativas para os escritores e leitores. Profissionais com décadas de experiência afirmam que nunca enfrentaram turbulência parecida (leia a coluna de José Francisco Botelho, na pág. 101). A redução da tiragem de obras e do número de lançamentos, a limitação de espaço a novos autores e a demissão de funcionários já são medidas adotadas por editoras para diminuir o prejuízo nos últimos meses. Mas o esforço pode ser em vão. “Sabemos que a situação das editoras é muito dura, e nossa postura é negociar como alguém que está do mesmo lado da mesa. A Saraiva precisa de editoras fortes e saudáveis para voltar a crescer”, afirma Jorge Saraiva Neto, diretor-presidente da livraria.
A dívida da Cultura, a segunda maior rede do país, é de 285 milhões de reais. Sem conseguir pagar o que deve, a empresa pediu recuperação judicial, um instrumento da lei que a protege e lhe permite ganhar tempo — são seis meses sem pagar os credores — enquanto monta um plano de reestruturação do passivo a longo prazo. A Saraiva, cuja dívida é estimada em 420 milhões de reais (dos quais 100 milhões em atraso, segundo cálculos do mercado), está em negociação com as editoras para tentar evitar o mesmo caminho, mas sua primeira proposta foi recusada na última semana. As duas já vinham atrasando pagamentos havia meses. Fundador da Sextante e presidente do Sindicato Nacional dos Editores de Livros (Snel), Marcos Pereira acredita que a possibilidade de editoras fecharem por não receber das duas redes é real, especialmente entre as pequenas e médias companhias. Elas estão numa encruzilhada: não podem abrir mão das vendas nos dois gigantes, mas ao mesmo tempo sabem que a probabilidade de tomar um calote é enorme. “É um momento muito nebuloso”, define Pereira. Para seduzirem o leitor, editoras e distribuidoras têm lançado mão de alternativas como clubes de assinatura, uso de plataformas de venda como Submarino, Amazon e Magazine Luiza e feiras de livros. Em paralelo, o investimento em sites próprios de e-commerce também cresceu. Mas ainda são canais de venda complementares, sem o público cativo que a Saraiva e a Cultura oferecem.
A situação das duas maiores redes de livrarias do país obedece a um enredo clássico de crise. Cada uma a seu modo, ambas fizeram investimentos — como lojas muito grandes, as megastores, com mais de 1 500 metros quadrados — que não deram o retorno esperado. Num momento de euforia da economia brasileira, contraíram dívidas para fazer investimentos que não se mostraram sustentáveis. Eletrônicos passaram a dividir espaço com livros, DVDs e CDs nas prateleiras da Saraiva. Se por um lado o mix ajudou a elevar a receita, por outro se mostrou um desafio para os executivos. Esses itens respondem por um terço do faturamento, mas consomem metade do capital de giro da empresa e têm uma complexidade tributária com a qual as livrarias, habituadas à isenção de impostos, não sabem lidar. Para tentar se reerguer, a Saraiva voltará a se concentrar em literatura e música, anunciou a demissão de 700 funcionários e o fechamento de vinte lojas. Na renegociação com as editoras, ainda em andamento, não está descartada a troca de parte da dívida por ações da companhia.
Somada às más decisões executivas, a recessão econômica do país formou a tempestade perfeita. As receitas com as vendas de livros caíram 20% na crise de 2015 a 2017. Outro fator fundamental para a crise foi a estratégia de promoções agressivas de editoras e livrarias. Mesmo livros recém-lançados que eram best-sellers garantidos foram colocados à venda com descontos de 20% ou mais, o que comprometeu a rentabilidade. É uma estratégia consagrada pela Amazon, que ganha dinheiro com outras fontes, mas a prática já era adotada no mercado brasileiro muito antes de o gigante americano entrar no país, em 2011. A francesa Fnac e a Submarino (no comércio on-line) foram duas das pioneiras desse modelo no Brasil. Para as editoras, o plano era ampliar a base de leitores e compensar a redução da margem de lucro com o volume de vendas. Não deu certo e a conta não fechou. A inflação acumulada nos últimos oito anos ficou em torno de 50%, impactando despesas como aluguéis e salários, enquanto o preço médio do livro caiu 8%.
Agora, as editoras e as livrarias buscam inspiração em modelos como o francês, com limitação do desconto oferecido em lançamentos. As livrarias, por sua vez, prometem implementar inovações que busquem a eficiência da operação. É importante que se mexam rápido, para evitar que um passo em falso arraste todas para o abismo — o que seria uma tragédia para a cultura nacional.
Publicado em VEJA de 14 de novembro de 2018, edição nº 2608