Imagens do pátio da fábrica da Ford em São Bernardo do Campo, no Estado de São Paulo, estão gravadas na história brasileira — mesmo que a maioria das pessoas de fora do ABC paulista não se dê conta disso. Ali aconteceram algumas das mais importantes greves de metalúrgicos das décadas de 70 e 80, que trouxeram pela primeira vez o sindicalismo para o centro da política e apresentaram o ex-presidente Lula ao Brasil. Por isso é tão emblemático o anúncio, feito na terça-feira 19, do fechamento da planta no bairro do Taboão, 52 anos depois de sua inauguração. O encerramento das atividades faz parte de um plano global de reestruturação financeira da empresa americana, que vem ficando para trás em relação a seus concorrentes europeus e asiáticos. Só na América do Sul, a Ford registrou um prejuízo de 678 milhões de dólares em 2018, e enxugar a operação é a única saída para tentar sair do vermelho. A companhia também vai encerrar a produção do modelo Fiesta e de todos os caminhões da marca, justamente o que saía da unidade do ABC. Mais de 4 300 empregos diretos e indiretos serão extintos, mas calcula-se que o efeito na cadeia de fornecedores vá elevar o número total de vagas cortadas a 24 000.
Apesar de os próprios funcionários se mostrarem resignados, a ponto de uma greve convocada para quarta 20 ter tido pouquíssima aderência, o secretário da Fazenda de São Paulo e ex-ministro da Fazenda Henrique Meirelles mantém esperanças de reverter a decisão da Ford. Ele e sua equipe têm programadas reuniões com representantes da montadora para propor saídas alternativas para a crise. “Vamos conversar sobre essa reorganização mundial da empresa e ver o que nós poderemos fazer para manter uma fábrica funcionando”, diz Meirelles. A ideia de repetir o sucesso de uma negociação recente com a General Motors — em que o secretário alinhavou um acordo com setenta fornecedores da marca para a redução de margens e prometeu conceder, a partir de 2023, incentivos fiscais para que as fábricas da montadora que ficam em território paulista continuem a operar — foi descartada pela Ford em reunião, na quinta 21, com o governador João Doria, que pretende agora encontrar um comprador para a planta.
De fato, o anúncio do fechamento de uma fábrica desse porte é impactante, principalmente para os funcionários e seus familiares, mas não chega a surpreender quem acompanha de perto os movimentos da indústria. Os lucros da Ford caíram 52% no ano passado, e a empresa já tinha anunciado uma parceria global com a alemã Volkswagen para dividir custos na produção de picapes e SUVs. Se a empresa quer economizar em seus modelos mais lucrativos, era fácil prever que o Fiesta, apenas o 49º carro mais vendido no Brasil, e os caminhões, mercado em que a Ford ocupa um distante quarto lugar em vendas, sofreriam em breve. A planta de São Bernardo não recebia investimentos desde 2015. Enquanto isso, outras unidades da montadora, mais robustas, seguem a todo o vapor. A fábrica de Camaçari, na Bahia, tem trabalhado em três turnos e horas extras nos fins de semana para produzir o Ka, o terceiro modelo mais vendido do país. O parque de Taubaté é referência mundial na produção de motores para exportação. Já a unidade de São Bernardo do Campo vem operando em turno único, em que os empregados montam carros em três dias da semana e se dedicam a caminhões nos outros dois.
Estudada durante meses, a decisão da Ford passou ainda pela percepção de que a indústria automobilística está à beira de uma transformação. A parceria com a Volks permite corte de custos na produção de utilitários, mas sua maior razão de ser é o desenvolvimento conjunto de carros elétricos e, num passo adiante, de veículos autônomos. Hoje, empresas de tecnologia como Uber, Alphabet (dona do Google) e Tesla estão à frente nessa corrida, e as companhias tradicionais sabem que não têm tempo a perder. Nesse contexto, não faz sentido tentar salvar uma planta deficitária que muito em breve estará obsoleta. A Ford pisou no freio, mas é um freio de arrumação.
Publicado em VEJA de 27 de fevereiro de 2019, edição nº 2623
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