A China não tem apenas o novo coronavírus e eventuais rebotes da pandemia iniciada no ano passado como fatores de risco para sua economia. Com um modelo de segurança alimentar do seu 1,4 bilhão de habitantes baseado em grande medida no consumo de proteína animal de origem suína, o país tornou-se um voraz comprador global de farelo de soja para sustentar seus animais. Trata-se de uma atividade em pleno desenvolvimento, desde que, em agosto de 2018, casos de peste suína dizimaram cerca de 60% do rebanho, sacrificado em decorrência da contaminação. Para o Brasil, o maior produtor de soja do mundo, tal situação é extremamente favorável, principalmente porque vem associada a um aquecimento da demanda provocado pela epidemia de coronavírus — os lockdowns espalhados pelo planeta aumentaram a procura por alimentos industrializados derivados de soja para consumo domiciliar.
O resultado dessa conjunção de fatores é que, até o mês passado, a China já havia comprado 72,6% da produção brasileira do grão. Tamanho apetite, somado à demanda nacional e de outros parceiros comerciais, levou o estoque do país a seu mais baixo patamar da história. Com o interesse internacional pela soja nas alturas, a safra brasileira deste ano já esta praticamente esgotada — um fato surpreendente porque será a maior já colhida no país, com 120,1 milhões de toneladas de produção. Diante do esvaziamento dos silos e armazéns, uma ótima notícia, restou aos produtores nacionais pensar no futuro, o que eles já estão fazendo ao pôr à venda de forma antecipada a colheita de 2022.
Sem poder contar com a produção brasileira, a China precisou recorrer ao segundo maior produtor mundial do grão, os Estados Unidos, país com o qual vive às turras em meio a uma acirrada disputa comercial. Para a China, a soja brasileira é mais vantajosa porque contém de 2% a 7% mais proteína que a de seus concorrentes. Mas as compras no mercado americano também ajudam o país a manter sem muito esforço as cláusulas do acordo comercial firmado entre as duas nações em janeiro. Com isso, os chineses podem exigir dos americanos, bem mais hostis na disputa, o cumprimento de suas contrapartidas.
Obviamente, o esgotamento da produção brasileira e a escalada da demanda fizeram com que o preço do produto disparasse. Na quarta-feira 19, a commodity chegou a 131,12 reais a saca de 60 quilos, de acordo com o indicador EsalqBM&FBovespa-Paranaguá, e a expectativa é que esse valor aumente ainda mais até o fim do ano. No primeiro semestre de 2020, o Brasil exportou quase 40% mais soja em relação ao mesmo período de 2019. “Houve uma antecipação de embarques, o que elevou muito o volume exportado, mas até dezembro a quantidade e a receita da venda internacional da soja devem aumentar de 2% a 5% em relação ao ano anterior”, estima José Augusto de Castro, presidente da Associação de Comércio Exterior do Brasil. Outro fator que impactou no crescimento das vendas brasileiras foi a desvalorização do real em relação ao dólar, o que torna o preço da soja nacional mais atraente — entre 31 de dezembro de 2019 e a quarta-feira 19, a desvalorização do real foi de 38,26%. Além do câmbio favorável, o agronegócio brasileiro tem a seu favor um elevado grau de produtividade, devido ao desenvolvimento tecnológico no campo, aliado à vasta oferta de terras para a produção.
Tamanha eficiência fez com que a participação do campo na balança comercial aumentasse nos últimos anos, ao contrário do que acontece com os produtos industrializados, que sofrem com as dificuldades do ambiente de negócios brasileiro. Desde o início dos anos 1990, o Brasil passa por uma gradual desindustrialização, ampliando a importância das commodities agrícolas na economia. Em 2019, os bens e serviços rurais foram responsáveis por 21,4% do PIB do Brasil, de acordo com dados do Cepea/USP em levantamento realizado em parceria com a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA). De janeiro a maio de 2020, o PIB do agronegócio cresceu 4,62%. Nas exportações, o setor ganhou ainda mais relevância, após uma forte queda de produção dos bens manufaturados. “O superávit da balança comercial brasileira deste ano vem basicamente do agronegócio”, diz José Augusto de Castro.
A crescente relevância desse setor tem atraído a atenção de investidores e provocado um avanço do grão para terras antes vistas como degradadas ou subutilizadas por outras atividades, como a criação de gado. “O Brasil tem áreas de pecuária muito antigas e que precisam ser mais bem aproveitadas. Ao todo são mais de meio milhão de hectares que provavelmente serão destinados ao plantio de soja”, afirma o consultor em agronegócio Vlamir Brandalizze. Com pouca interferência do Estado no setor, o agronegócio brasileiro tem uma fluidez e agilidade raras no país, inclusive na busca de soluções para aumentar ganhos. Um bom exemplo de que a esfera pública contribui muito ao não se envolver em negócios privados.
Publicado em VEJA de 26 de agosto de 2020, edição nº 2701