Uma das mais importantes iniciativas do governo no campo da economia, a reforma tributária que o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, planeja emplacar no segundo semestre promete desbastar o cipoal de impostos que atravanca o crescimento econômico do país. Em paralelo, promete atacar também outro problema crônico nacional: a generosa política de subsídios, isenções e desonerações que beneficia grupos setoriais, segmentos industriais e empresas em detrimento de outros. Apenas em 2021, o governo federal abriu mão de arrecadar 330 bilhões de reais, o que equivale a 3,8% do PIB brasileiro. O problema é que muitas dessas benesses são concedidas por meio de critérios questionáveis ou desvirtuados de sua proposta original.
Um exemplo gritante da barafunda que vigora nesse setor é a situação das Zonas de Processamento de Exportação (ZPEs). Criadas em 2007 com o objetivo de estimular as vendas externas de produtos fabricados em um regime especial de isenção de impostos, tais estruturas — na teoria — seguem o modelo que fortaleceu o crescimento econômico da China e foi replicado posteriormente em outros países. No Brasil, apesar de dezessete áreas desse tipo terem sido criadas nominalmente, apenas duas delas foram instalada, em Pecém, no Ceará; e em Parnaíba, no Piauí. É justamente esse primeiro complexo com três indústrias o pivô de uma ação de inconstitucionalidade movida pelo partido Republicanos que tramita no Supremo Tribunal Federal (STF).
A confusão em torno da ZPE de Pecém começou na pandemia de Covid-19. Até então, as empresas ali instaladas seguiam o formato e as regras originais, em que tinham vantagens cambiais e aduaneiras, isenção de impostos na compra de maquinário e equipamentos desde que pelo menos 80% de sua receita fosse proveniente de vendas ao exterior. No local, funcionam uma fábrica da produtora de gases industriais White Martins, a Companhia Siderúrgica do Pecém (CSP), comprada no ano passado pela multinacional belgo-indiana ArcelorMittal, e a empresa Phoenix, de serviços para o setor siderúrgico.
Com a pandemia, em meio à crise no abastecimento de oxigênio medicinal no país, foi editada em fevereiro de 2021 uma medida provisória (MP) que flexibilizou a exigência de que a maioria das vendas fosse destinada ao exterior, com foco exclusivo na área de gases, para permitir que a White Martins abastecesse o mercado nacional. Nos meses seguintes, a MP foi submetida a uma série de emendas na Câmara dos Deputados, ficou recheada de jabutis e, em julho, sem debates nem reflexões, virou lei, batizada de Marco Legal das ZPEs. “É o exemplo acabado de simulacro do processo legislativo. Com as emendas, criou-se uma situação em que empresas instaladas em ZPEs poderão usufruir dos incentivos fiscais oferecidos, por mais que tenham vendas exclusivamente no mercado interno”, explica o advogado Bruno Calfat, responsável pela ação do Republicanos no STF.
A ação que tramita no STF alega que a nova legislação é inconstitucional, uma vez que o processo que alterou uma MP dedicada a um assunto emergencial e a transformou em lei não contou com as devidas consultas e discussões necessárias. Além disso, acrescenta Calfat, contraria decisões do próprio tribunal, engendrando vantagens para todas as empresas instaladas em ZPEs, a mais gritante sendo o fim da exigência da venda para o exterior da maior parte dos produtos ali fabricados, sob um regime fiscal muito mais favorável que suas pares instaladas em outras regiões. De fato, entra no rol de favorecimentos tributários, fugindo completamente de seu espírito inicial.
Por comunicado, a dona da siderúrgica afirma que acompanha o julgamento do STF que analisará a ausência de limite mínimo da exportação e aguarda a decisão. “A ArcelorMittal entende que a modificação legislativa não ofende a isonomia e a livre concorrência”, alega. Na Corte, a decisão sobre o futuro das ZPEs e o seu impacto na competitividade industrial caberá ao ministro Kassio Nunes Marques. Com ele está a missão de solucionar o enrosco criado na Câmara.
O Ministério do Desenvolvimento Indústria, Comércio e Serviços (MDIC) esclarece que as Zonas de Processamento de Exportação (ZPEs) não foram criadas em 2007, mas na década de 80. O regime foi modernizado em 2007 e também em 2021, seguindo as melhores práticas internacionais – o que já trouxe resultados positivos, como o aumento de propostas de novos projetos industriais e de criação de novas ZPEs, inclusive pela iniciativa privada.
Posicionamento do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços acerca da reportagem:
Importante ressaltar que, quando os produtos fabricados nas ZPEs são destinados para o mercado interno, a legislação prevê o pagamento dos tributos que foram suspensos na etapa anterior, acrescidos de multa e juros (Selic). As empresas instaladas em ZPEs também podem optar por pagar os tributos devidos regularmente, conforme o plano de negócios da empresa. Também cabe esclarecer que a Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) citada na reportagem data de maio do ano passado, e ainda está aguardando decisão. Por fim, quanto ao fim da exigência de percentual mínimo de receita de exportação, essa inovação legal segue as melhores práticas mundiais e as diretrizes e compromissos de comércio internacionais do país.
Publicado em VEJA de 5 de abril de 2023, edição nº 2835