Alta de preços surpreende o mundo e traz risco ainda maior para o Brasil
Por aqui, pesa a perspectiva de não cumprimento da meta de inflação pelo terceiro ano consecutivo em 2023
Um choque duplo tem alimentado uma inflação global como não se via fazia décadas. De um lado, estão os reflexos econômicos da pandemia de Covid-19, que ainda causam descompassos de produção, consumo e gargalos logísticos por todo o mundo. Do outro, a invasão da Ucrânia pela Rússia e seu impacto nos preços das commodities que os dois países exportam. O resultado é uma corrosão do poder de compra que atingiu a economia global que, pelo menos para uma geração, é inédita. Tanto que até mesmo nos Estados Unidos, depois de constatado que o aumento de custos não seria temporário como projetava anteriormente, o Federal Reserve, o banco central americano, deu início neste ano a um aumento de juros, para tentar controlar a inflação que já chega a 8,5% em doze meses. A dificuldade para domar esse dragão é tamanha que os investidores de Wall Street começam a projetar cenários sombrios. Um relatório publicado no domingo de Páscoa, pelo Goldman Sachs, estima ser de 35% a probabilidade de haver uma recessão na maior economia do mundo dentro dos próximos dois anos.
Em países com o amargo histórico de conviver com disparadas nos preços e descontrole econômico, como o Brasil, as perspectivas são ainda mais preocupantes. Célebre economista liberal brasileiro, Roberto Campos (1917-2001) definiu a inflação como “um monstro brutal e cruel que tortura particularmente os assalariados”. Agora, no Brasil, é seu neto e presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, que tem percebido na prática a veracidade dessas palavras. É dele a missão de preservar a moeda contra o aumento dos preços — e ela não tem sido bem-sucedida.
A batalha para deixar a inflação anual próxima da meta preestabelecida pelo próprio BC foi perdida em 2021, está comprometida para 2022 — segundo a instituição, há 88% de possibilidade de a inflação ficar acima do limite de 5%, já com margem de tolerância — e agora todos os esforços estão direcionados para evitar uma nova derrota em 2023. Para o próximo ano, o centro da meta é de 3,25%, com tolerância de 1,5 ponto, mas muitos no mercado já estão projetando alta acima disso. “Fomos submetidos a um forte choque, mas é claro que o BC se atrasou. Essa análise não envolve um julgamento, até porque os sinais mostravam ser temporários, mas o atraso implicou em perder o controle da inflação. Passamos a ver o repasse de preços internacionais impactar o Brasil”, avalia Alexandre Schwartsman, ex-diretor do BC.
Desde que o regime de metas foi instituído com o Plano Real, o BC falhou três vezes seguidas apenas entre 2001 e 2003. Repetir o fracasso joga contra a credibilidade conquistada nas últimas décadas. Em doze meses até março, a inflação brasileira está acumulada em 11,3%, e a persistência das pressões assustou o próprio Campos Neto. “A inflação do índice mais recente foi uma surpresa”, declarou, ao registrar que a alta de março foi a maior para o mês em 28 anos, ou seja, desde o início do Plano Real. “Essa surpresa se fez em vários países e a realidade é que a nossa inflação está muito alta e os núcleos estão muito altos.”
O aumento de preços é especialmente custoso para o presidente Jair Bolsonaro, que busca a reeleição. Aliados do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Sila, inclusive, recomendam que o tópico seja um dos principais focos de crítica à gestão atual durante a campanha eleitoral. “O BC está sendo obrigado a aumentar as taxas de juros, contraindo o crescimento, para controlar a inflação, o que tem um alto custo político para o atual governo”, diz Carlos Thadeu de Freitas Gomes, outro ex-diretor da instituição.
A estratégia é dura, mas correta, uma vez que a inflação já prejudica a população. Com o dinheiro no bolso valendo menos, o brasileiro está cortando gastos. Seis em cada dez pessoas, por exemplo, já mudaram os hábitos de consumo, segundo um levantamento encomendado pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) e divulgado na quarta-feira 20. É uma realidade que ajuda a explicar o motivo do setor de serviços, o que mais emprega no país, estar em regressão. Em janeiro e fevereiro deste ano, ele registrou queda de 0,1% e de 0,2%, de acordo com o IBGE.
O empobrecimento decorrente da inflação também se reflete na queda do salário e no aumento das dívidas das famílias. Em fevereiro, a renda média mensal dos trabalhadores estava em 2 511 reais, 8,8% abaixo do registrado no mesmo período do ano passado. Já o endividamento em março atingia 77,5% das famílias brasileiras, segundo a Confederação Brasileira dos Serviços (CNS). Trata-se de um recorde em doze anos. Desse total, 27% não conseguem pagar as contas, levando também a um nível de inadimplência recorde, justamente no momento de alta da taxa de juros. Nesse cenário, a curto e médio prazo, o futuro da economia do país começa a ser desenhado como difícil e pouco auspicioso.
Publicado em VEJA de 27 de abril de 2022, edição nº 2786