É do físico alemão Albert Einstein uma frase essencial sobre o poder dos números. “A matemática não mente”, disse o gênio que desenvolveu a teoria da relatividade. A velha máxima merece ser usada para analisar, sem as paixões ideológicas que movem a política brasileira, o impacto que o chamado arcabouço fiscal provocará na economia do país. Aprovado na terça-feira 22, após idas e vindas, insatisfações do Centrão com a suposta falta de espaço na administração federal e rusgas declaradas entre o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e o presidente da Câmara, o deputado Arthur Lira (PP-AL), o novo marco que procura dar orientação às contas públicas nasce com boas intenções, mas sua real efetividade está longe de ser comprovada. E por uma simples razão: os números, afinal, não mentem.
Da forma como foi desenhado, a única maneira de o arcabouço se tornar eficaz e garantir o suprimento de recursos desejado pelo governo para fazer investimentos é com o aumento da arrecadação — cortes de despesas não estão no plano. De acordo com a nova regra, de 2024 a 2027 os gastos federais poderão crescer até o limite de 70% da variação real da receita, mas isso só se as metas dos anos anteriores forem cumpridas. Caso contrário, foi fixado o limite de 50% de variação. Além de condicionar o crescimento das despesas à alta das receitas, a proposta promete zerar o déficit nas contas públicas a partir de 2024.
A meta estabelecida pela equipe de Haddad é que, já a partir de 2025, o resultado primário — ou seja, a diferença entre receitas e despesas — corresponda a 0,5% do PIB e que haja superávit de 1% em 2026. Como se dará o milagre? Para alcançar esse objetivo, o jeito será elevar o volume de dinheiro arrecadado. Segundo cálculos feitos pelo banco BTG Pactual, seria preciso que as receitas aumentassem no montante de 2,5% do PIB. Os números, sempre eles, não mentem: isso daria algo como 290 bilhões de reais a serem gerados. Resta saber de onde virá a montanha de recursos.
Eis aqui o “x” da questão. Nas últimas semanas, o governo vem sugerindo formas “criativas” de trazer mais dinheiro para o Tesouro. Algumas medidas, apresentadas claramente como balões de ensaio, seriam não apenas inócuas como trariam efeitos adversos para a economia do país. Uma das ideias colocadas na mesa é a taxação de fundos exclusivos, conhecidos no mercado como “fundos dos super-ricos”. Para especialistas, a medida não terá o efeito esperado. “Ela é questionável, porque traz problemas técnicos grandes”, diz o economista Marcos Lisboa, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda. Um dos problemas apontados pelo especialista é a fuga de capital que a cobrança promove. Desde o início do ano, os fundos exclusivos acumulam entrada de 13 bilhões de reais, segundo monitoramento realizado pela Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima). Contudo, apenas em julho, após sugestão de que o governo taxaria o setor, foram retirados 284 milhões de reais. Esse dinheiro, claro, foi para algum lugar, provavelmente para outros países.
A medida, ressalve-se, não puniria os ricos, como supõe o time econômico da Fazenda. Com mais informações e auxílio para encontrar brechas, eles detêm os meios e o conhecimento necessários para movimentar seu dinheiro, levando-o para destinos que ofereçam melhores condições de retorno do capital investido. Especialmente se o discurso do governo for na linha do “nós contra eles”. Na verdade, a classe média e os pobres acabariam pagando a conta, contrariando, portanto, as expectativas do governo Lula. No primeiro caso, as pessoas teriam dificuldades para transferir seus investimentos e seriam obrigadas a arcar com a nova taxação. A fuga de capitais que a medida provocaria também atingiria em cheio os pobres, encarecendo o dólar. Menos investimentos no país significariam redução de negócios e, na ponta final, menos perspectiva de geração de empregos.
A história ensina que a tributação sobre patrimônio jamais funcionou em país algum. Há uma década, o aumento dos impostos aplicados sobre os ricos levou muitos deles a deixar a França, um movimento que demonstrou, na prática, como a medida é improdutiva. Um caso emblemático foi o do ator de cinema Gérard Depardieu, que trocou seu país pela Bélgica. Nem é preciso ir longe. Na vizinha Argentina, o apetite voraz do governo por impostos fez com que indivíduos dotados de riqueza decidissem morar em outras praças. Em 2019, às vésperas de uma medida desse tipo adotada pelo governo argentino, vários ricos bateram em retirada. Marcos Galperín, fundador do site Mercado Livre e dono de uma fortuna estimada em 5,5 bilhões de dólares, foi viver no Uruguai. “O debate deveria ser se a tributação será pelo patrimônio ou pela renda obtida”, diz Lisboa. “O mundo mostra que tributar pelo lucro é sempre melhor.”
Muitas das promessas de arrecadação do governo parecem ilusórias. Outra fonte de recursos alardeada por Haddad é a tributação de apostas esportivas. Nas contas do governo, ela renderia entre 12 bilhões e 15 bilhões de reais por ano. Será mesmo? Economistas habituados com contas públicas estimam bem menos: 2 bilhões de reais. Há exageros onde quer que se olhe. A mudança nas regras do Conselho de Administração de Recursos Fiscais (Carf), que julga imbróglios tributários, teria impacto de até 60 bilhões de reais, segundo estimativas do governo. Mas especialistas dizem que o montante não chegaria a 40 bilhões de reais. A disparidade de 20 bilhões não pode ser ignorada.
Para aumentar a arrecadação, o governo também aposta no crescimento da economia. Isso faz sentido, mas, novamente, é preciso ter cautela. Hoje em dia, o maior responsável por impulsionar o PIB é o agronegócio. De acordo com o IBGE, a cadeia do agro responde por algo como 25% da economia nacional e 20% de tudo o que é arrecadado no Brasil. No campo oposto, quem cresce menos é a indústria, que contribui com 24% do PIB e 34% da arrecadação de tributos federais. Ou seja, o setor que mais colabora com a captação de impostos é o que avança menos, enquanto o mais pujante não tem o mesmo peso na coleta de tributos.
A reforma tributária poderá eliminar distorções, mas as pressões políticas não serão desprezíveis. O Congresso deverá resistir a projetos que onerem a indústria e o agronegócio, enquanto o setor de serviços teme o aumento dos impostos. Com tamanho desafio, o mercado não acredita que o governo vai entregar as metas de resultado primário previstas. “Se chegar perto, já será suficiente”, afirmou Mansueto Almeida, economista-chefe do BTG Pactual, em evento do banco Santander realizado em São Paulo.
A solução para o governo fechar suas contas poderá vir na forma da famigerada “contabilidade criativa”, estratégia de triste lembrança no Brasil. “Seria o equivalente a gastar sem aparecer no orçamento, antecipando receitas e empurrando despesas no colo de empresas estatais”, afirma o economista Marcos Mendes, ex-assessor especial do Ministério da Fazenda. Infelizmente, os sinais de que esse será o caminho trilhado pelo governo se avolumaram nos últimos meses. O Ministério da Gestão, por exemplo, pediu a exclusão de até 5 bilhões de reais em despesas com o Novo PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) da meta de despesas das estatais para 2024.
O Planalto também já considera nas contas de 2023 os 12 bilhões de reais que a Caixa pagará ao Tesouro Nacional em virtude da identificação de depósitos judiciais que já deveriam ter sido repassados aos cofres da União — o problema é que dinheiro obtido no presente não significa que virá da mesma forma no futuro. Para pavimentar o caminho do crescimento, o governo não deveria torturar os números. É preciso olhar para dentro e saber cortar privilégios e gastos desnecessários.
Publicado em VEJA de 25 de agosto de 2023, edição nº 2856
Errata: A Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima) identificou “um erro no levantamento de captação líquida de fundos exclusivos”. Ao contrário do informado anteriormente pela entidade, o saldo total de captação líquida nos fundos exclusivos é de 13 bilhões de reais no ano e não saídas de 70 bilhões de reais.