Como o avanço do Centrão atrapalha o plano de privatizações
Olho gordo em cargos técnicos colocam em xeque agenda do ministro Paulo Guedes, mas quadros técnicos blindam-se do flerte de Bolsonaro com o fisiologismo
“Não existe essa coisa de dinheiro público, existe o dinheiro dos pagadores de impostos”, vaticinou Margaret Thatcher, a Dama de Ferro, primeira-ministra britânica entre 1979 e 1990. Precursora de uma política-econômica liberal na Inglaterra, a baronesa liderou uma agenda de reformas e privatizações de estatais para garantir a transformação fiscal do país, conquistando a valorização da moeda inglesa, a libra esterlina, e o controle da inflação do país em plena guerra fria. A atração de capital privado por meio de medidas que garantissem segurança aos investidores fortaleceu a Inglaterra em um momento de incertezas galopantes, com o potencial avanço do comunismo (e consequente intervencionismo econômico) na ilha. Os tempos são outros e a ameaça vermelha, uma lenda demodê que, vira e mexe, surge em alguns protestos pelo país. No Brasil contemporâneo e assolado pela crise importada pelo coronavírus, a ameaça à agenda propositiva organizada por Paulo Guedes, ministro da Economia, e Tarcísio Gomes de Freitas, da Infraestrutura, tem uma configuração disforme e nomes conhecidos pelos brasileiros: o Centrão.
Tão britânica e liberal quanto Thatcher é a revista The Economist. A publicação dedicou, no mês passado, um artigo ao presidente Jair Bolsonaro, trazendo à pauta europeia as decisões erráticas do presidente em relação às políticas de combate ou minimização da pandemia. “Restam poucas dúvidas de que a conduta do presidente seja caso constitucional para um impeachment”, vaticina a revista — que de comunista, não tem nada. Para amealhar os riscos de um afastamento, o presidente recorre àquilo que há mais de velho na política brasileira, e que o então candidato Bolsonaro prometeu combater: o fisiologismo atrás de apoio no Congresso Nacional. O problema: as garras do Centrão e de políticos atrás de verbas e obras para ganhar escopo eleitoral em órgãos centrais do poder põem em xeque a diretriz técnica de quadros dentro do Governo Federal, principalmente em um setor tido como trivial para a recuperação econômica do país, a infraestrura.
Não bastasse o flerte do ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, com a irresponsabilidade fiscal e gastança para retomar as obras por meio do malfadado Plano Pró-Brasil, o governo começou a tentar esgueirar indicados de figuras como os ex-deputados famosos pelo protagonismo no mensalão petista, Roberto Jefferson e Valdemar da Costa Neto. “Salivando pelo Dnit”, Costa Neto viu o cargo de chefia do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes ser ocupado rapidamente por Gomes de Freitas para mitigar a aproximação tenebrosa dos partidos de aluguel e escolheu, no início do mês, um nome técnico para comandar a autarquia. Trata-se, como antecipou VEJA, de Euclides Souza, ex-diretor do Dnit. O flerte com hábitos do passado não parou por aí.
Ao mesmo tempo em que avança na consolidação da privatização do Porto de Santos, com a contratação de estudos junto ao Banco Nacional de Desenvolvimento Social, o BNDES, para tocar os projetos de privatização, o Ministério da Infraestrutura começou a trabalhar pela construção de um ramal ferroviário na área da Marimex Despachos, Transportes e Serviços, no porto. Por isso, optou por não prorrogar o contrato da empresa com a Santos Port Authorithy, autoridade que administra o ancoradouro. A empresa opera terminal na região de Outeirinhos, à margem direita, e sua atividade é dedicada ao armazenamento de contêineres. O contrato vencerá no próximo dia 8 de maio. A linha ferroviária ocupará parte da área onde, atualmente, funciona o terminal da Marimex. A não-renovação automática com a gestora deixou autoridades políticas furiosas, que procuraram o ministro para reclamar dos movimentos. Como mostra VEJA, o deputado Paulinho da Força (Solidariedade-SP) disse a quem quisesse ouvir que o governo havia lhe oferecido o Porto de Santos, histórico centro de falcatruas, mas que ele recusara porque não era a hora de entrar no governo.
Outros ambientes desejados pelo baixo clero estão no escopo do ministério comandado por Gomes de Freitas, que blinda-se e procura se manter discreto nas discussões entre Bolsonaro e os partidos de aluguel. Segundo a análise de executivos da Infraestrutura, assim como os ministérios da Economia e da Agricultura, tidos como “fábricas de boas notícias” pelo trabalho técnico que realizam, estão mais protegidas de pressões do que ministérios mais folclóricos do governo Bolsonaro, como o Turismo, a pasta dos Direitos Humanos e a triste gestão da Educação. Apesar disso, ambientes que não ostentam orçamentos polpudos estiveram na mira de membros do fisiologismo, para operacionalizar obras em nichos eleitorais de parlamentares e melhorar a imagem junto aos votantes, mas cujos números viraram argumento contra as indicações políticas. O Ministério da Infraestrutura comemora o uso das empresas Valec e Empresa de Planejamento e Logística (EPL), voltadas a desenhar projetos de concessão e a administração de obras, para a conquista de contratos de projetos. Desde o início da gestão de Gomes de Freitas, a pasta celebrou 29 concessões para obras serem tocadas pela iniciativa privada.
Nem mesmo dentro do governo, porém, a gestão das duas empresas é ponto pacífico. Em sua cartilha de empresas prontas para serem privatizadas,o secretário de Desestatização, Salim Mattar, elencou a Valec e EPL como companhias no rol para serem concedidas à iniciativa privada, para mitigar os aportes de 22,7 bilhões de reais e de 460 milhões de reais engendrados pelo Governo Federal entre 2009 e 2018. Gomes de Freitas bateu o pé e argumentou que as duas companhias são essenciais para a continuidade dos processos de concessão. O Ministério da Economia parece ter acatado, apesar das empresas ainda estarem na relação de passíveis desinvestimentos. Os estudos na pasta, agora, compreendem a mescla das duas empresas, que deverão dividir as diretorias e cargos de gestão.
Apesar das investidas, as duas empresas não são as meninas dos olhos de ouro da classe política, que, vá lá, conseguiu uma boquinha no setor, mas sob a pasta comandada por Marinho, o Desenvolvimento Regional, na chefia do Departamento Nacional de Obras contra as Secas (Dnocs). Indicação do deputado Sebastião de Oliveira (PL-PE), Fernando Marcondes Leão, do Avante, foi escolhido pelo presidente Jair Bolsonaro na última semana para comandar o departamento. Pois bem: Oliveira foi alvo de operação da Polícia Federal nesta quinta-feira 8, acusado de supostos desvios no Contorno Viário da Região Metropolitana de Recife, trecho da BR-101. Lá, entendem membros do Ministério da Infraestutura, há elementos sólidos (leia-se verba) para atrair membros do fisiologismo, já que o orçamento destinado ao órgão é de 1 bilhão de reais neste ano. A atração com Centrão se torna mais perigosa quando, além da questão moral, os movimentos políticos atingem as contas e projetos importantes para o país, ainda mais em um momento tão difícil.