Atacada por Bolsonaro, maconha medicinal é mercado lucrativo
Ela movimenta uma ampla cadeia de empresas e fundos de investimento interessados em um setor que pode chegar a 4,7 bilhões de reais
Como é de praxe nos momentos em que quer fazer barulho, o presidente Jair Bolsonaro se postou à frente da claque que o aplaude na porta do Palácio da Alvorada na manhã de terça-feira 11 de maio e deu vazão a seu discurso: “Hoje uma comissão na Câmara vota a liberação da maconha. Eles agora podem até aprovar, mas tem veto. É ridículo um país com tantos problemas aprovar uma porcaria de projeto desses”, declarou. O dispositivo legal a que o presidente se referia era o Projeto de Lei 399/2015, que regulamenta o plantio legalizado da maconha (a Cannabis sativa) e a comercialização de medicamentos que contenham derivados da planta como o canabidiol (CBD) em sua formulação.
Pouco depois, foi a vez do deputado Osmar Terra (MDB-RS), ex-ministro da Cidadania, tomar a palavra na reunião da comissão citada por Bolsonaro e açoitar o relatório do projeto de lei que qualifica como “marco legal da maconha”. “Sobre o biombo da criança que precisa do canabidiol estamos legalizando o plantio e o consumo da maconha no Brasil”, disparou Terra. “Se o relatório for aprovado, a maconha estará liberada no país. Isso vai aumentar a entrada no campo das outras drogas. E aí acabou, meu amigo”, discursou. Sua tentativa de barrar o andamento do projeto acabou derrotada e a legislação deve voltar a ser alvo de apreciação dos parlamentares na segunda 17. A ofensiva do presidente e de seu ex-ministro tem como pano de fundo um próspero ramo da indústria farmacêutica, já instalado e em pleno funcionamento no país. Desde maio do ano passado, se encontra à venda nas farmácias brasileiras o primeiro medicamento à base de canabidiol (CBD) produzido no Brasil. Aprovado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em meados de abril de 2020 e feito com matéria-prima importada, o remédio tem tarja preta e exige receituário especial para compra. O preço unitário de um frasco é de 2 300 reais, um valor salgado, mas que deve ser reduzido com a chegada de versões mais econômicas com concentrações de CBD menores, recém-aprovadas, que custarão cerca de 260 reais. O produto é resultado de uma parceria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) de Ribeirão Preto com a farmacêutica paranaense Prati-Donaduzzi, uma das maiores fabricantes de medicamentos genéricos e similares do país. O produto não tem indicação clínica predefinida, mas é utilizado principalmente contra a epilepsia refratária, uma doença que provoca intensas e sucessivas convulsões em crianças.
Acredita-se que a liberação do plantio controlado da maconha no país e a produção local de seus derivados reduziriam o custo dos remédios, hoje vistos como inacessíveis à maior parte dos potenciais beneficiados. Apesar de popular entre os ativistas e mesmo entre os parlamentares da comissão, não é um raciocínio compartilhado pelo fabricante. “Imagina-se que, por ser uma planta de fácil cultivo, a produção local pode reduzir o custo. Isso é um mito. O que importa na equação do preço é o desenvolvimento da tecnologia para produzir o medicamento. É isso que impacta o valor”, explica Eder Maffissoni, diretor-presidente da Prati-Donaduzzi.
Polêmicas à parte, o setor de remédios derivados da Cannabis é considerado por especialistas como uma promissora fronteira a ser explorada. De acordo com dados das consultorias The Green Hub e New Frontier Data, o mercado brasileiro tem potencial de chegar a 4,7 bilhões de reais anuais apenas três anos depois da criação de regras mais flexíveis, que possibilitem a consolidação de uma cadeia produtiva local integrada, da geração de sementes ao desenvolvimento e fabricação dos produtos. “Ainda há muito preconceito e desinformação em torno da Cannabis, mas estamos falando de uma indústria legítima, importante para a economia e a saúde pública brasileiras”, diz Tarso Araujo, presidente da recém-criada Associação Brasileira da Indústria de Canabinoides (BRCann), entidade que representa as empresas nacionais do setor, todas voltadas para o uso terapêutico.
Entre as grandes apostas dessas empresas está a inclusão, em um futuro próximo, dos remédios à base de Cannabis na lista de medicamentos do SUS. Calcula-se que, com esse movimento, seria aberto um mercado potencial de 700 000 pessoas com doenças como artrite, esclerose múltipla, dores crônicas e ansiedade que podem ser beneficiadas. Nesse caso, cada grupo de 1 000 pacientes envolvidos no programa consumiria o equivalente a 80 milhões de reais em doses. Em 2020, o mercado brasileiro de produtos à base de canabinoides, os derivados da maconha, movimentou aproximadamente 150 milhões de reais, segundo os dados da BRCann. Atualmente, além da versão nacional feita pela Prati-Donaduzzi, existe apenas um segundo produto à base de CBD disponível nas farmácias, importado pela britânica GW Pharmaceuticals e comercializado sob o nome de Mevatyl. Em paralelo, há empresas que compram os produtos de fornecedores internacionais e os vendem para pacientes cadastrados e autorizados pela Anvisa, devidamente acompanhados por médicos especializados.
Na defesa dos produtos, médicos e executivos das indústrias farmacêuticas costumam ressaltar que o CBD usado nos remédios não tem os efeitos psicoativos indesejáveis de outro derivado bem conhecido, o tetrahidrocanabinol (THC). Além do CBD e do THC, a maconha possui 142 componentes já identificados, mas a maior parte deles ainda não foi totalmente mapeada com relação a seus efeitos no organismo. À parte as pressões de ativistas favoráveis à liberação completa da maconha para o uso recreativo, os pesquisadores de fármacos preferem não misturar as duas situações. “Por enquanto, temos de priorizar o uso medicinal dos derivados que conhecemos bem, uma vez que milhões de pacientes podem ser beneficiados. O que não podemos é brincar com a saúde das pessoas”, ressalta Marcel Grecco, sócio da consultoria The Green Hub, que também atua como aceleradora de empresas da área.
Entre os empreendedores que hoje desbravam os negócios da Cannabis estão nomes conhecidos do universo corporativo. Ex-diretor financeiro da Hypera (dona de marcas como Benegrip, Epocler, Merthiolate e Neosoro), Martim Mattos trocou a carreira de doze anos como executivo na farmacêutica paulista para lucrar nesse segmento. Na empreitada, se associou a Marcelo Marco Antônio, da família fundadora do Hospital São Luiz, e a Fabio Furtado, herdeiro do grupo de autopeças Grid. Juntos criaram a GreenCare e hoje importam oito produtos fabricados fora do país — o objetivo é chegar a vinte até o fim do ano. Em paralelo, uma fábrica em Vargem Grande, na região metropolitana de São Paulo, foi adquirida para iniciar a produção local. “É um mercado de produtos farmacêuticos como qualquer outro”, resume Mattos. Mais um nome bastante conhecido que se aventura na área é Theo van der Loo, ex-CEO da Bayer no Brasil. Depois de se aposentar, ele resolveu fundar a NatuScience, outra importadora com planos de produção nacional. “Há muitas pessoas entrando nesse ramo. Obviamente nem todos sobreviverão”, comenta. Além das empresas diretamente envolvidas em operações comerciais há ainda as que apoiam iniciativas com vistas ao futuro. A alemã Merck, uma das potências farmacêuticas do mundo, fundada em 1668, fechou parceria com a The Green Hub no Brasil para prover de informações técnicas e regulatórias os interessados em desenvolver produtos.
Entre as companhias que se estruturam para explorar o setor há as que adotam modelos híbridos com atuação local e internacional. A Verdemed, uma das mais conhecidas do ramo, foi fundada em 2018, no Canadá, por José Bacellar, ex-CEO da Bombril, para aproveitar a estrutura de um dos países mais avançados na liberação da Cannabis. A empresa espera autorização da Anvisa para comercializar, já no segundo semestre deste ano, dois produtos no país. Seu objetivo é ser a primeira empresa de Cannabis medicinal de capital brasileiro a ter ação listada em bolsa — no caso, a de Toronto, dadas as restrições a esse tipo de atividade na congênere paulista, a B3. Ainda no setor financeiro, já existem mecanismos de captação de recursos para companhias do ramo por meio de fundos de investimentos. A XP possui um fundo dedicado a esse fim, enquanto a plataforma Vitreo oferece dois deles. “Ouvíamos piadas do pessoal do mercado dizendo que íamos ficar chapados com nosso negócio”, ironiza George Wachsmann, sócio da Vitreo. Brincadeiras à parte, os dois fundos de Cannabis da gestora reúnem 18 000 cotistas e têm patrimônio de 270 milhões de reais investidos.
O processo de liberação do uso de derivados da maconha para produtos farmacêuticos no Brasil seguiu modelo semelhante ao que se vê na França, Reino Unido e Alemanha. Embora tenha ganhado impulso nos últimos anos em outros países, como Estados Unidos, México e Uruguai, o uso recreativo continua proibido. Uma possibilidade de reverter essa situação diz respeito a um processo que tramita no Supremo Tribunal Federal e pode levar a um entendimento mais amplo sobre a questão. Entretanto, a discussão se arrasta, dificultada pelo ambiente conservador do governo Bolsonaro. “Drogas são um tema tabu e há um custo político que impede o avanço do julgamento”, explica o advogado Cristiano Maronna, representante de uma das dezenove instituições envolvidas no processo. A expectativa mais otimista é que o STF torne a discutir o assunto quando a pandemia da Covid-19 arrefecer. “É possível que, no começo de 2022, a Corte volte a apreciar o julgamento sobre o porte de drogas para uso pessoal”, afirma o presidente do STF, Luiz Fux.
Enquanto o PL 399/2015, criticado por Bolsonaro, segue em debate na Câmara, algumas companhias já se adiantaram para estruturar sua operação sem ele. Os sócios da novata LACann acabam de comprar uma fazenda de 25 hectares a 50 quilômetros de Assunção para produzir maconha dentro dos parâmetros legais no Paraguai. “Percebemos que a aprovação do cultivo seria complicada, então adaptamos nossa estratégia”, explica Geraldo Rodrigues, principal coordenador e investidor do projeto. Com a produção, a empresa pretende abastecer as linhas de fabricação de medicamentos no Brasil e também exportar para outros países. “Hoje a Anvisa só permite o uso de medicamentos à base de Cannabis para cerca de 30 000 pacientes. Porém, quando olhamos o universo de doenças, vemos que existe um contingente enorme que poderia ser beneficiado”, avalia Bruno Hardt, sócio da Prana Capital e investidor da LACann.
No passado recente, um assunto dessa natureza causaria uma grande oposição popular. Hoje já não é mais assim. Uma pesquisa patrocinada pelo Civi-Co, polo de negócios de impacto cívico-sócio-ambiental, com 1 000 entrevistados em todo o país apontou que 70% dos brasileiros apoiam o uso medicinal da Cannabis e 48% estão abertos ao tratamento se receberem indicação médica. Ao contrário do que apregoa o presidente, o assunto não parece tão ridículo quanto ele acredita.
Colaboraram Luisa Purchio, Juliana Castro e José Benedito da Silva
Publicado em VEJA de 19 de maio de 2021, edição nº 2738