Brasil corre o risco de ficar de fora da festa da retomada pós-pandemia
O mundo se prepara para uma forte expansão a partir da vacinação em massa contra a Covid-19; cenário brasileiro não é tão otimista
O surgimento da pandemia de gripe espanhola, ou influenza, na virada da segunda década do século XX, foi marcado por forte controvérsia. Os primeiros casos e mortes foram registrados no estado do Kansas, nos Estados Unidos, em fevereiro de 1918. Dois meses depois surgiam focos na França, Inglaterra e Alemanha. Como todas essas nações estavam envolvidas na fase final da I Guerra Mundial, a dimensão e o risco da doença foram escamoteados para não prejudicar o desenrolar do conflito, em que os aliados já estavam prestes a derrotar os alemães. Apenas na Espanha, país neutro, a epidemia ganhou o noticiário em sua devida dimensão — daí o nome que usamos até hoje para designar a doença. Quando o mundo se deu conta do perigo, o dano já estava feito.
Estima-se que a gripe espanhola tenha infectado mais de 500 milhões de pessoas e matado entre 20 milhões e 50 milhões delas. Além de representar uma tenebrosa tragédia sanitária, a pandemia teve forte impacto na economia mundial, provocando queda no consumo e na produção de bens e aumento do desemprego — somente nos Estados Unidos, onde foram registrados 650 000 mortos, o índice que era de 1,4% de desocupados em 1918 saltou para 11% no ano seguinte. Assim que a pandemia começou a arrefecer, depois de dois anos, teve início uma era de prosperidade e desenvolvimento inéditos. Em 1923, o PIB americano cresceu 12,6% e o desemprego caiu para 4,8%. O presidente Calvin Coolidge chegou a declarar que “o negócio dos Estados Unidos são os negócios”.
Como uma espécie de recorrência cíclica, assistimos a um movimento semelhante em relação à pandemia da Covid-19, que já infectou 164 milhões de pessoas e matou 3,4 milhões. Quando começou a se espalhar pelo mundo, o coronavírus surgido em Wuhan, na China, praticamente paralisou a economia mundial e levou às previsões mais apocalípticas. Hoje, depois da chegada das vacinas, esse cenário é outro. Após uma retração da economia global de 3,3% em 2020, o Fundo Monetário Internacional (FMI) projeta um crescimento de 6% em 2021 (o maior desde 1980) e de 4,4% em 2022. Apenas os Estados Unidos, país que registra 33 milhões de casos de Covid-19 e 588 000 mortes, deverão ter uma expansão do PIB da ordem de 6,4% neste ano. A China alcançará 8,4% de crescimento. Da mesma forma, outros integrantes do G7 devem apresentar uma performance muito acima do normal. A França, que teve uma evolução média do PIB de 1,7% entre 2016 e 2019, chegará a 5,8%. O Reino Unido sai de 1,5% no mesmo período para 5,3%. É um movimento que só encontra paralelo no pós-guerra dos anos 1950.
Em comum, todos os países que usufruirão a prosperidade pós-pandemia investiram bilhões (e no caso dos Estados Unidos, trilhões) de dólares em programas de estímulo econômico. Da mesma forma, desenvolveram planos de vacinação abrangentes e eficazes que lhes garantiram uma dianteira na imunização de sua população, abrindo caminho para a normalização das atividades. O Reino Unido, primeiro país do mundo a aplicar a vacina fabricada pela farmacêutica Pfizer, no início de dezembro de 2019, imunizou 55% da população com a primeira dose. Os Estados Unidos, que alcançaram o índice de 47%, já começam a se programar para doar vacinas excedentes para o resto do mundo, depois de atingir um estágio em que as máscaras já deixam de ser obrigatórias para imunizados com as duas doses. Tomando como base o desempenho das trinta maiores economias do planeta, estima-se que a cada aumento de 10% na população vacinada o PIB seja revisado para cima em 0,13 ponto.
Se as nações mais desenvolvidas do mundo têm motivos para comemorar a recuperação pós-pandemia, o Brasil ainda patina no controle da epidemia e nas expectativas de retomada. Apesar de o governo ter revisado as estimativas de crescimento do PIB para 3,5% em 2021 (próximo aos 3,7% estimados pelo FMI), ante a queda de 4,1% em 2020, a volta ao patamar pré-Covid-19 só deve ser alcançada em 2022, com o crescimento previsto para 2,6%. O plano do Ministério da Saúde de vacinar até 2,4 milhões de pessoas por dia está estagnado em 700 000 doses diárias devido à falta de matéria-prima para a produção dos imunizantes no país e ao atraso na compra das vacinas de fornecedores internacionais.
Nesse ritmo, o índice de vacinação é de 18%, inferior até mesmo ao de vizinhos como o Chile, que apostou em uma ampla estratégia de imunização traçada ainda no ano passado e hoje se aproxima dos 50% da população vacinada. Com esse índice, a projeção do FMI é que os chilenos alcancem um crescimento do PIB de 6,2% neste ano. Na comparação direta, percebe-se a vantagem do país andino em atividades como o comércio. Em março, as vendas no varejo local subiram 18,3%, diante do mesmo mês do ano passado, contra uma alta de 2,4% no Brasil. “Em relação ao Chile, o Brasil falhou, por exemplo, ao não investir nos fechamentos da atividade e na vacinação rápida”, explica o economista Otaviano Canuto, ex-diretor do FMI. “O Chile apostou em um lockdown severo e fechou contratos arriscados com as fabricantes de vacina. Hoje o país vê uma luz no fim do túnel.”
No ritmo atual de vacinação e mantidas as previsões feitas pelo governo com base na produção local e nas encomendas de imunizantes no exterior, o Brasil teria chances de começar a fazer uma reabertura segura da economia a partir de setembro, segundo levantamento do banco de investimento UBS BB. Para que isso aconteça, o país precisará ter cerca de 56% da população vacinada, sendo 90% dos imunizados com 30 anos ou mais. Com isso, estaria garantida a segurança do grupo populacional que representa 98% das mortes por Covid e 95% das hospitalizações. Alcançadas tais condições, o Brasil passa a ter chances de voltar ao patamar pré-crise no ano que vem — um resultado que os Estados Unidos devem atingir já neste ano.
Para fazer frente aos impactos da pandemia, a equipe econômica repete a estratégia de 2020: tenta proteger o mercado formal e o setor produtivo, ainda que por meio de programas de estímulo de dimensões bem mais modestas. O auxílio emergencial, que no ano passado disponibilizou 293 bilhões de reais a 68 milhões de pessoas, foi reeditado com o orçamento de 43 bilhões de reais a ser pagos a 46 milhões de brasileiros entre abril e junho. O programa que permite a redução de jornadas e a suspensão de contratos de trabalho foi reeditado por quatro meses e deve durar até julho. Já o financiamento para pequenas empresas garantido pelo Tesouro, o Pronampe, ainda não foi autorizado. A estratégia desenhada pelo Ministério da Economia procurou sincronizar as medidas com o programa de vacinação e se estende até o fim do terceiro trimestre. “É um plano bom, com programas que se mostraram efetivos, mas haveria uma segurança maior se houvesse mais previsibilidade na vacinação”, analisa José Pastore, professor de relações do trabalho da USP.
O grande desafio de curto prazo para a equipe do ministro Paulo Guedes é garantir que empresas e trabalhadores resistam aos próximos meses de pandemia em condições de promoverem a retomada, ainda que uma terceira onda de Covid atinja a população. “É fundamental não permitir que um choque transitório tenha efeitos permanentes na economia”, avalia o secretário de política econômica do Ministério da Economia, Adolfo Sachsida. “E, para isso, nós temos de insistir na agenda de reformas pró-mercado e na consolidação fiscal”, explica.
Passada a fase crítica da pandemia, o ideal seria que o país aproveitasse o impulso favorável que vem, principalmente, do exterior para engatar sua própria recuperação econômica. A forte expansão internacional aliada a um surpreendente ciclo de alta nos preços das commodities — o da soja quase dobrou em um ano enquanto o do minério de ferro chegou a um avanço de quase 50% — mostra que não faltam oportunidades ao país. Ao mesmo tempo, as rápidas retomadas entre os sucessivos períodos de fechamento e abertura das atividades não essenciais durante a pandemia demonstraram a capacidade de recuperação rápida dos baques mais violentos da economia. No entanto, fora do governo, não são poucos os céticos quanto à perspectiva de o país aproveitar a bonança em patamares próximos de seus pares internacionais. “O Brasil tem dois problemas: um pandêmico e outro endêmico”, define Alberto Ramos, diretor de pesquisa econômica para América Latina do banco americano Goldman Sachs. “O primeiro diz respeito à Covid-19 e à vacinação em si. Esse vai passar. O segundo tem causas muito mais profundas no contexto econômico e deve se estender além da crise de saúde.” Nesse sentido, é preciso considerar que o padrão mantido pelo Brasil antes do surgimento do coronavírus era de pequeno crescimento, com baixos índices de investimentos e de produtividade.
As causas do desempenho sofrível da economia brasileira nos últimos anos são bem conhecidas e se deterioraram em meio à crise: a situação fiscal insustentável com alta dívida pública, o desemprego e uma grave incerteza política. Desde 2013, o país não registra taxas de crescimento acima de 2% ao ano. De lá para cá, houve uma forte recessão e sucessivas crises políticas. A instabilidade voltou à tona com a conduta errática do governo de Jair Bolsonaro diante da pandemia, atualmente investigada na CPI da Covid. As reformas estruturais prometidas por Paulo Guedes, que ofereciam a perspectiva de avanços, se arrastam e o ajuste fiscal, que já era imperativo pré-pandemia, se tornou agora mais urgente.“É muito difícil falar em reformas mais profundas neste momento, principalmente a trabalhista e a tributária, em que o processo eleitoral se aproxima”, diz Ana Paula Vescovi, diretora de macroeconomia do Santander Brasil e ex-secretária do Tesouro.
Em efeito cascata, a incerteza macroeconômica acaba por coibir a disposição dos empresários em investir, o que compromete o ritmo de retomada e da criação de postos de trabalho. Ao mesmo tempo, a aproximação das eleições aponta para um potencial aumento nos gastos do governo. O mercado avalia que o presidente Jair Bolsonaro não poupará esforços (nem recursos públicos) para buscar a reeleição. “Bolsonaro assumiu com a promessa de implantar um modelo econômico liberal, mas isso não vai acontecer porque ele não acredita nisso”, afirma Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central (confira a entrevista).
Países mais endividados tendem a crescer menos e a ter economias mais voláteis. Qualquer oscilação econômica pode provocar efeitos massivos. E isso pode acontecer caso o ciclo de commodities se encerre ou a forte retomada americana provoque inflação. Uma alta de juros na maior economia do mundo leva investidores a buscar ativos mais seguros, e os mercados emergentes, como o brasileiro, acabam prejudicados. O Brasil não pode apostar na sorte nem em soluções milagrosas. Apenas as vacinas e as reformas podem garantir a presença do país na grande festa do fim da pandemia.
Publicado em VEJA de 26 de maio de 2021, edição nº 2739