Foram quatro anos de negociações, entre 1991 e janeiro de 1995, até o Mercado Comum do Cone Sul (Mercosul) entrar em vigência. Três décadas depois de iniciadas as conversas, a integração que nunca chegou a ser completa vive um momento especialmente conturbado. Na quarta-feira 21, o presidente Jair Bolsonaro, atualmente ocupando também a presidência rotativa do bloco, disparou um de seus recorrentes cutucões contra o governo de Alberto Fernández, da Argentina. Em uma publicação em rede social, Bolsonaro recordou sua previsão de que a eleição do peronista provocaria a migração em massa de argentinos para o Brasil — o que, na opinião dele, seria hoje uma realidade. “Vivemos o momento mais estranho do Mercosul, com um afastamento gigantesco entre os dois maiores parceiros”, diz José Botafogo, diplomata e ex-ministro da Indústria.
À parte as provocações gratuitas de Bolsonaro, os pilares para a integração têm sido minados por divergências severas entre os sócios mais importantes do bloco. A Argentina restringe ao máximo possível a abertura completa de suas fronteiras comerciais, sob a alegação de que uma inundação de produtos brasileiros destroçaria as empresas locais. O Uruguai, por meio de seu presidente, Luis Lacalle Pou, explicitou no início de julho a intenção de negociar acordos bilaterais com outros países sem anuência dos parceiros. É uma ideia que vem ao encontro da posição brasileira. “Nós não podemos deixar que vetos do governo argentino possam impossibilitar acordos nossos”, disse o ministro da Economia, Paulo Guedes, em junho.
Na linha da discórdia, o Brasil também pressiona pela redução da tarifa externa comum (TEC), aplicada aos produtos que vêm de fora do bloco. Atualmente, a alíquota da maior parte dos produtos industriais gira em torno de 14%. A proposta inicial do governo brasileiro envolvia reduzir em 20% todas as tarifas para transações comerciais, em duas etapas. A revisão tem apoio do Paraguai e do Uruguai. A Argentina é contra. Como alternativa, Buenos Aires sugeriu a redução a zero de uma série de produtos, menos os industriais. A proposta gerou um impasse. “A medida de Guedes tornaria mais agressiva a concorrência externa, ainda que contrarie alguns interesses do setor privado brasileiro”, afirma Rubens Barbosa, especialista em relações internacionais e embaixador do Brasil em Londres e Washington nas décadas de 1990 e 2000. De fato, a própria indústria brasileira faz lobby contra a redução das tarifas antes que o governo ataque o custo Brasil por meio de simplificação tributária e da reforma administrativa.
Entre os economistas, entretanto, é consenso que a modernização do Mercosul e maior liberdade comercial para os membros são não apenas desejáveis, como necessárias para a evolução de cada uma das economias. Mas também entende-se que uma ruptura drástica pode trazer perdas consideráveis. “Os argentinos apostam na mudança de governo no Brasil em 2022 para postergar o debate”, diz Welber Barral, ex-secretário de Comércio Exterior. Para o Brasil, o custo político de abandonar o Mercosul é alto. O país tem na Argentina o terceiro maior destino de suas exportações e a saída significaria perder mercado importantíssimo para os produtos industriais. Com a pandemia e a instabilidade econômica pairando sobre a região, fomentar rivalidades e rusgas paroquiais é uma péssima ideia.
Publicado em VEJA de 4 de agosto de 2021, edição nº 2749