Intrigas corporativas, acusação de conspiração e uma espetacular fuga internacional. Parece a sinopse de uma série de streaming, e em breve realmente será. A história da prisão no Japão e da escapada de Carlos Ghosn, o ex-todo-poderoso da aliança Renault-Nissan e um dos principais executivos do setor automotivo, acaba de virar livro e já está na fase de produção para ir ao ar no ano que vem — os produtores estão negociando no momento com as plataformas Netflix, HBO Max e Hulu. A narrativa, ao mesmo tempo épica e rocambolesca, carrega elementos que lembram os jidaigeki, gênero de filmes protagonizados por samurais em que o personagem principal, depois de enfrentar diversos dissabores, avança no contra-ataque aos rivais. “Parece um filme mesmo, mas para mim foi um pesadelo”, resume o executivo brasileiro-franco-libanês, nascido em Rondônia.
Tanto o livro quanto a futura série fazem parte de um novo desafio empreendido por Ghosn, agora para, além de provar sua inocência, reconstruir sua reputação. O livro Juntos, Sempre, escrito com a esposa, Carole Ghosn, foi lançado na França e chega nesta semana às prateleiras brasileiras pela editora Intrínseca. Pode ser considerado uma espécie de diário do casal sobre o tempo que ambos ficaram separados, porém repleto de detalhes sobre o imbróglio corporativo e jurídico em que o executivo se meteu. Atualmente radicado em Beirute, no Líbano, país que o protege da ordem de prisão nas mãos da Interpol, Ghosn acusa com veemência as autoridades nipônicas e a cúpula da Nissan de terem forjado um “show midiático” para evitar a incorporação total da montadora japonesa pela parceira francesa, dando origem a um colosso corporativo global. “Eles criaram uma grande ficção para me tirar do comando”, alega ele, que era o chefe do conselho de administração da Nissan, apontando participação do governo japonês. “Nada acontece no Japão sem a aprovação do Ministério da Economia. Sei disso baseado na minha interação com o governo por tantos anos.”
Quando fala em ficção, Ghosn se refere diretamente ao processo da Justiça japonesa em que é acusado de haver sonegado cerca de 44 milhões de dólares em impostos. O valor seria metade de um pacote de remuneração aprovado como compensação por sua aposentadoria. “Na verdade, nunca levei essas acusações a sério porque eu sabia desde o começo que isso era um plot, um show. Acusaram-me de sonegar impostos sobre valores que eu nunca recebi”, defende-se. A Embaixada do Japão no Brasil, por sua vez, informa que a acusação envolve não só uma declaração falsa sobre a sua remuneração, mas também a remessa pela Nissan de recursos para contas que, mesmo em nome da empresa, na verdade seriam movimentadas por ele. Desde o fim de 2019, os japoneses também o acusam de saída ilegal do país, depois de ter sido solto sob fiança.
Em sua temporada na prisão, Ghosn passou 130 dias em uma solitária, com um tatame como cama e direito a dois banhos semanais. Foi solto uma primeira vez, mas acabou detido novamente após quatro semanas, pouco depois de conceder uma entrevista coletiva à imprensa. Depois de mais vinte dias de detenção, foi liberado para cumprir prisão domiciliar na capital japonesa, em que era proibido de acessar a internet e de se comunicar com a esposa. De novembro a 30 de dezembro de 2019, quando fugiu, Ghosn só conversou duas vezes com ela por videoconferência — ambas com a presença do advogado e não sem antes o executivo apresentar uma lista dos tópicos que abordaria na conversa. “O juiz chegou a me perguntar por que eu queria conversar com a minha mulher. Ora, porque ela é minha mulher”, ironiza.
Alguns detalhes da fuga do executivo devem aparecer na série, desde que os processos já tenham avançado até lá. É uma forma de preservar pessoas envolvidas na escapada e que acabaram presas nos Estados Unidos e na Turquia — respectivamente, um ex-militar americano e seu filho, que atuaram na segurança de Ghosn, e três funcionários da empresa de táxi-aéreo turca que o levaram para o Líbano. Ele afirma que traçou o plano de fuga em poucas semanas. Alega que deixou o Japão por estar convencido de que não teria um julgamento justo e que era discriminado pelo sistema judiciário por ser estrangeiro. Ele saiu de casa escondido em uma caixa de instrumentos musicais, foi embarcado em um trem-bala para Osaka, cidade onde tomou o jatinho que o levou a Istambul, e de lá seguiu para Beirute.
Em paralelo ao ataque ao sistema judicial e ao governo japonês, Ghosn reserva munição também para as empresas do conglomerado que comandou por vinte anos. Em 2018, a aliança vendia praticamente a mesma quantidade de carros que a Toyota e a Volkswagen, as duas maiores do mundo. No ano passado, a aliança comercializou 7,7 milhões de veículos, quase 2 milhões de unidades a menos que cada uma das concorrentes. A união franco-nipônica ainda amargou um prejuízo de 8 bilhões de dólares. Do topo de sua infinita autoconfiança, Ghosn não titubeia em apontar tais números como o atestado de fracasso de seus sucessores.
Publicado em VEJA de 7 de abril de 2021, edição nº 2732