Com reoneração, Haddad crava primeira vitória frente à ala política do PT
Ministro da Fazenda tem conquista após decisão em torno dos impostos sobre combustíveis - mas a guerra está só começando
Desde os primórdios da campanha eleitoral, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sempre deixou explícito que, em seu governo, quem mandaria na economia seria ele. Em uma gestão petista não existiria espaço para figuras como Paulo Guedes, o chamado Posto Ipiranga de Jair Bolsonaro, que pontificou como o czar da estratégia liberal (não 100% implantada, infelizmente) no agigantado Ministério da Economia entre 2019 e 2022. Com a escolha de Fernando Haddad para o reinstituído Ministério da Fazenda, empresários, financistas e investidores se perguntavam se o noviço na área seria capaz de garantir equilíbrio em um campo tão complexo, sensível a todo tipo de interferências políticas. Na semana passada, uma resposta positiva começou a se desenhar no horizonte com a primeira vitória expressiva de Haddad no cargo. Sua posição de que o governo deveria, depois de oito meses de isenção, voltar a cobrar os impostos federais sobre a gasolina e o etanol, acabou sacramentada por Lula, mesmo sofrendo forte bombardeio da ala política do PT.
O tema em questão, repleto de especificidades técnicas, é delicado. Bolsonaro promoveu o corte dos impostos sobre combustíveis em meio à farra eleitoreira em que abriu os cofres públicos para alavancar sua popularidade na campanha — malsucedida — pelo segundo mandato. A justificativa era o impacto da disparada dos preços internacionais do petróleo na inflação no Brasil. Entretanto, quando a medida entrou em vigor, as cotações do petróleo já tinham se estabilizado e o efeito, apesar da queda nos preços dos combustíveis, foi pequeno no resto da economia. Ao perder a eleição, Bolsonaro deixou uma bomba armada para Lula já no início de governo, uma vez que a isenção era válida apenas até o fim de 2022. O petista se viu dividido entre trazer os impostos de volta (e com isso correr o risco de comprometer sua popularidade na largada de seu mandato) e manter a isenção e absorver as perdas de recursos decorrentes. Haddad se posicionou de forma firme pela volta dos impostos. Lula preferiu dar ouvidos aos seus conselheiros políticos que eram contra a volta dos tributos e prorrogou a desoneração por dois meses. Com isso, a batalha em torno da questão acabou adiada para fevereiro.
Por dois meses, o tema dos preços dos combustíveis se fez presente em declarações públicas de ministros — muitos deles sem nenhuma relação com economia — e de políticos petistas influentes no partido. Às vésperas do vencimento do prazo para a decisão, o assunto tornou-se alvo de uma série de conversas, que se iniciaram no sábado 25, com um telefonema entre Haddad e Lula, e reuniões, na segunda-feira 27 e na terça-feira 28, envolvendo os ministros da Casa Civil, Rui Costa, de Minas e Energia, Alexandre Silveira, e o presidente da Petrobras, Jean Paul Prates. Na sexta-feira 24, a deputada federal e presidente do PT, Gleisi Hoffmann, havia disparado um verdadeiro morteiro na forma de um tuíte: “Não somos contra taxar combustíveis, mas fazer isso agora é penalizar o consumidor, gerar mais inflação e descumprir promessa de campanha”.
Surpreso com a declaração, Haddad procurou Lula para saber se já havia uma definição que ainda não lhe havia sido informada. Ouviu como resposta que se tranquilizasse, pois Gleisi não falava pelo governo. Na segunda-feira, Lula fechou questão em torno do posicionamento de Haddad. Antes de isso acontecer, o ministro da Fazenda procurava passar a imagem da serenidade a alguns interlocutores preocupados com a mensagem da presidente do PT. Nessas conversas, pontuava que o presidente tende, no momento de tomar as decisões importantes, a se pautar por opiniões mais equilibradas e que apontam para o bom senso, a despeito da retórica inflamada das últimas semanas. “Se para Lula, a Gleisi é uma pessoa muito querida, o Haddad assume o papel do homem da razão”, diz um empresário que conversou com o ministro em meio ao episódio.
A autoridade de um ministro da Fazenda é fundamental para a credibilidade de qualquer política econômica. Depois de Haddad defender a reoneração dos combustíveis, no fim de dezembro, e ver seu posicionamento derrotado, instalou-se o receio de que membros da ala política do governo gozariam de maior influência de que o próprio titular do Ministério da Fazenda. Desacostumados às idiossincrasias estratégicas de Lula e da dinâmica de decisões dentro do petismo, muitos analistas políticos e do mercado financeiro passaram a prever que Haddad acabaria se tornando um ministro da Fazenda fraco, refém dos jogos políticos do partido e de fogo amigo constante. A impressão aumentou quando Lula passou a atacar a política de juros, a autonomia do Banco Central e seu presidente, Roberto Campos Neto, mesmo enquanto o ministro tentava colocar panos quentes na questão. Por isso, a conquista de Haddad é um marco relevante.
O ex-prefeito de São Paulo galgou postos na administração pública e ascendeu na política pelas mãos de Lula, que costuma chamá-lo de o melhor ministro da Educação da história do país. À frente do Ministério da Fazenda no terceiro mandato do petista ganhou uma vitrine estratégica para alavancar seu protagonismo no partido e entre o eleitorado. Em contrapartida, Haddad deixa claro que cumpre as ordens do chefe, fiel ao mantra lulista de que quem dita os rumos da política econômica é o presidente da República. Mas isso não o livra dos sopapos dentro do PT, dos quais os mais ostensivos têm vindo de Gleisi. Em 2018, quando estava preso e tornou-se inelegível, Lula chegou a considerar tanto o nome da deputada federal como o de Haddad como possíveis candidatos à disputa com Bolsonaro. Na ocasião, prevaleceu a opção por seu ex-ministro.
Desde então, ele é visto como sucessor natural de Lula caso o mandatário não concorra mais ao Palácio do Planalto. O problema é que nem todos os petistas concordam. Empoderada na formação do ministério, Gleisi acalenta sonhos mais ambiciosos e trava um duelo permanente com Haddad — por poder na máquina pública, influência na esquerda e ascendência sobre Lula. A prorrogação da isenção dos combustíveis no início de janeiro foi interpretada como uma vitória dela sobre o ministro. Já a volta dos tributos representa mais do que um empate.
Lula escolheu a solução defendida por Haddad mesmo depois de Gleisi e uma penca de petistas atacarem publicamente a sua posição. Ele prestigiou o ministro num momento de fritura e, de quebra, reforçou uma percepção importante do ponto de vista eleitoral: enquanto Gleisi fala para o petismo e aposta num receituário populista, Haddad prefere a responsabilidade na gestão econômica e um diálogo mais amplo. Até aqui, aliás, ele tem sido a voz da razão dentro de um governo ainda confuso e muito voltado para o passado. “Haddad se tornou muito respeitado entre os maiores banqueiros do país. Não era quem eles queriam, mas agora consideram que está fazendo um bom trabalho e ganhou o coração da Faria Lima”, diz um executivo próximo ao setor financeiro.
Ninguém deveria ser a favor da volta de impostos (leia a Carta ao Leitor, na pág. 6), mas uma eventual derrota de Haddad nessa disputa representaria um desastre de grandes proporções. Além de pulverizar sua credibilidade junto ao mercado, a outra opção levaria ao sepultamento do pacote já anunciado para o ajuste das contas públicas — um marco relevante para atestar a seriedade da atual administração. Os 28,8 bilhões de reais previstos com a reintrodução do tributo sobre combustíveis e a cobrança da recém-criada taxa sobre exportação de petróleo cru significam 11,3% das medidas anunciadas para buscar arrecadar até 247 bilhões de reais a mais neste ano. “Estamos com o compromisso de recuperar as receitas que foram perdidas ao longo do processo eleitoral por razões demagógicas”, declarou Haddad, na última segunda-feira. “A meta estabelecida pelo Ministério da Fazenda em janeiro é de déficit inferior a 1% do PIB.”
Ainda que expressiva e um importante sinal de bom senso do atual governo, a vitória do dia 27, evidentemente, não foi absoluta. Concessões tiveram de ser feitas, e assim é a vida, no governo ou fora dele. Para recompor o caixa, o ministro queria a volta integral dos impostos, como eram antes da interferência de Bolsonaro, mas Lula optou por uma reoneração parcial. Pela decisão, o governo volta a cobrar, desde o primeiro dia de março, 0,47 real de PIS/Cofins e Cide por litro da gasolina nas refinarias e 0,02 real do etanol. Antes de junho de 2022, a incidência era de 0,69 real para a gasolina e 0,24 real para o etanol. A diferença equivale a 6,6 bilhões de reais para os cofres. Esse montante deve ser compensado com a taxação de exportações de petróleo, valendo por quatro meses. “Nas gestões do PT, diferentemente das demais, o partido tem forte influência sobre o governo”, analisa Tony Volpon, ex-diretor do Banco Central, cotado para ocupar em breve o posto de diretor de política monetária da instituição. “Pode-se dizer que nessa disputa Haddad acabou ganhando 80% do argumento, não 100%, e ainda há o questionamento do mercado se o imposto de exportação vai ser aprovado no Congresso.”
Como se sabe, esse imenso jogo está apenas no começo. Não faltarão dificuldades, novos confrontos e adversários pelo caminho. Além dos embates com Gleisi, uma constante ameaça (e mais velada) vem de Aloizio Mercadante, que montou, como presidente do BNDES, um time de peso ministerial, com nomes estelares como os do ex-ministro da Fazenda Nelson Barbosa e do economista André Lara Resende. Mercadante, que ambiciona o posto do colega, declarou recentemente que o banco pretende contribuir com propostas para o plano de equilíbrio das contas públicas, uma interferência explícita — e desnecessária — nas atribuições do titular da Fazenda. Haddad, porém, mostrou que está vivo na disputa, que consegue convencer o chefe e que, pelo menos até o momento, defende o caminho correto na solução dos problemas econômicos. Que essa vitória, portanto, seja a primeira de muitas.
Publicado em VEJA de 8 de março de 2023, edição nº 2831