“Nada pode impedir que a nação e o povo chineses avancem.” Assim falou o presidente Xi Jinping na porta de Tiananmen, o mesmo local onde Mao Tsé-tung (1893-1976) proclamou a fundação da República Popular da China, exatos setenta anos antes, em 1º de outubro de 1949. A festa de comemoração da data histórica contou com uma parada militar, composta de 100 000 pessoas. Entre tanques e aviões, destacou-se ainda o desfile de inovações, fruto de avanços tecnológicos liderados pelo regime comunista, que é politicamente fechado (na prática, uma ditadura) mas aberto à economia de mercado e aos investimentos estrangeiros. A nação que era conhecida como o país da cópia usou o evento para reforçar no mundo a imagem de seu grau avançado de desenvolvimento. Entre outras engenhocas, exibiu um drone hipersônico e um novíssimo míssil balístico intercontinental — com capacidade para transportar dez ogivas nucleares em direção a qualquer ponto dos Estados Unidos.
Não há registro no mundo de uma transformação tão drástica quanto a desencadeada pelos chineses nas últimas sete décadas. Durante boa parte do século XX, a China mal havia se industrializado, a maior parcela da população passava fome e o país era visto como exemplo de como um antigo império pode se autodestruir em consequência de sucessivos erros políticos e econômicos. Entretanto, a China promoveu um invejável plano de recuperação que a tirou do papel de polo miserável e a transformou no maior mercado consumidor do planeta e na economia que só perde em tamanho para a dos Estados Unidos. Planejados como uma política de governo seguida à risca, os maciços aportes de dinheiro em tecnologia funcionam como motores por trás dessa revolução e fazem do gigante asiático o centro mais pulsante de inovação no mundo, desafiando o poderio americano nessa área.
“O futuro pertence à China”, disse Lei Jun, o carismático fundador da fabricante de celulares Xiaomi, de Pequim, em uma conferência realizada no ano passado em São Francisco, nos Estados Unidos. Recentemente, a Xiaomi lançou seu segundo modelo de telefone para 5G, o revolucionário sistema de conectividade. O gigante asiático largou na frente na corrida comercial em torno da novidade. Em diversas áreas, como a de conexão com a internet, por meio da tecnologia 5G, e em investimentos em IA, a China disputa o topo. No primeiro campo, as doze maiores cidades nacionais têm acesso ao 5G. Em IA, relatórios globais mostram que, em cinco anos, a China vai superar os Estados Unidos em estudos nesse campo.
Para chegarem ao topo, os chineses investiram pesado em educação. Entre 2010 e 2015, injetaram 250 bilhões de dólares ao ano no ensino superior — realizado tanto em universidades locais como pelo envio de alunos a instituições internacionais. No aspecto do empreendedorismo, poucas nações produziram empresas tão revolucionárias quanto bem-sucedidas em um curtíssimo espaço de tempo. Tome-se como exemplo a DiDi, criada por Cheng Wei em 2012. Rapidamente, ela virou uma startup avaliada em 60 bilhões de dólares e começou a ganhar escala graças a um sistema de inteligência artificial que coleta 70 terabytes de dados todos os dias para identificar gargalos no sistema de transporte. O algoritmo desenvolvido pela equipe de Wei é tão ágil e eficiente que provocou um efeito colateral inesperado: fez da Uber uma operação obsoleta na China, a ponto de ser vendida à própria DiDi. E mais: o modelo agora é imitado por concorrentes do mundo inteiro, uma tremenda ironia para um país conhecido, até pouco tempo atrás, por clonar produtos concorrentes.
Um dos símbolos desse avanço impressionante é a cidade de Shenzhen, localizada em um dos cinco centros nacionais de produção de inovações criados por Xi Jinping, que formam uma espécie de “Vale do Silício chinês”. Devido a uma série de incentivos, um protótipo que levaria duas semanas para ser desenvolvido na Califórnia costuma ser criado em um dia naquela localidade. Produtos fabricados na área ainda têm custo cerca de 60% menor, em comparação com os americanos. Resultado: em 2016, Shenzhen se consolidou como o maior polo do mercado de smartphones, com produção anual de 1 bilhão de unidades — em todo o mundo 1,8 bilhão de aparelhos do tipo são feitos.
Sinais da avançada tecnologia não ficam restritos ao “Vale do Silício chinês”. Chamam a atenção do turista de primeira viagem ao país, por exemplo, o silêncio e a ordem no trânsito de cidades com mais de 20 milhões de habitantes. A calmaria, apesar dos engarrafamentos homéricos, se deve a dois tipos de máquina dominados pelo país. O primeiro é o motor sem combustível: a China tem a maior frota de carros e ônibus elétricos do planeta — 20% de seus veículos não produzem fumaça nem ruído. O segundo é invisível, mas impressionante. Radares identificam, mesmo em meio a avenidas com oito ou dez pistas repletas de automóveis, qual deles está buzinando e emitem uma multa — que chega imediatamente ao smartphone do motorista nervosinho. Na mesma linha, câmeras em todo o país fazem o reconhecimento facial dos cidadãos, e qualquer derrapada, como atravessar a rua fora da faixa, pode significar uma penalidade automática. Locais de grandes aglomerações, como estações de metrô e estádios, servem para que a polícia atualize o cadastro daqueles que as câmeras não identificaram, seja por um novo corte de cabelo, seja pelo uso de óculos. No caso de estrangeiros, o policial fala em mandarim no microfone do celular e a tradução aparece na tela em qualquer língua. Como toda tecnologia a serviço da vigilância, ela também tem seus usos mais, digamos, amigáveis: no aeroporto, os telões de informação sobre os voos reconhecem o passageiro na sua frente e, automaticamente, mostram o portão e o horário de embarque em destaque. “A tecnologia e a qualidade da produção deles dominarão o mundo em um nível que ainda nem podemos suspeitar”, afirma Carlos Alberto de Oliveira Andrade, fundador da Caoa, parceira no Brasil da Chery, uma das grandes fabricantes chinesas de automóveis.
Em 2015, o presidente Xi Jinping proclamou o que apelidou de “China Manufactured 2025”. Trata-se da meta de fazer com que o país deixe de ser conhecido apenas pela mão de obra barata, que fabrica inovações americanas (de iPhones a roupas), ou pelas cópias de produtos estrangeiros, para virar a maior potência de inovação, com ambição de ultrapassar os EUA. Com isso, a China quer desenhar uma nova indústria que promete, até 2025, acrescentar 150 bilhões de dólares ao PIB. Em uma extensa lista de tarefas a ser cumpridas, identificaram-se dez setores-chave a ser financiados pelo Estado — entre eles, tecnologia da informação, automação, automóveis elétricos, medicamentos de nível genético e fármacos.
É essa perspectiva que dá medo até mesmo no presidente americano Donald Trump, que desde o início de seu governo, em 2017, vem alimentando uma intensa guerra comercial com a China. “Um conflito que vai além de uma disputa tarifária”, comenta Marcos Caramuru, ex-embaixador do Brasil na China e hoje sócio de uma consultoria com sede em Xangai. “O que os americanos exigem deles é praticamente uma nova revolução cultural: que passem a se importar com copyright, que diminuam a influência em seus vizinhos, que abram mão do controle cambial. Os chineses nem cogitam tais possibilidades. Essa disputa talvez dure para sempre.” Uma das batalhas dessa guerra gira em torno da Huawei, empresa que está à frente do desenvolvimento da tecnologia 5G. Em 2018, os Estados Unidos rejeitaram a entrada da companhia chinesa no país com a justificativa de que a empresa não seria segura para os usuários. No ano passado, Trump assinou um termo que proibia a compra de tecnologias americanas por parte do gigante chinês. Austrália, Alemanha e Canadá têm o mesmo receio. A proibição americana foi revista depois de uma reunião entre os presidentes Trump e Xi Jinping, porém a desconfiança ocidental de uso da tecnologia para espionagem permanece. Para a próxima semana, está previsto um novo encontro entre representantes dos dois países para tentar aparar as arestas na relação. Mas a pressão dos Estados Unidos não é o único problema enfrentado hoje pelo governo de Pequim. Apesar do forte esquema de repressão, a mesma política centralizada que permitiu que projetos revolucionários deslanchassem sofre hoje forte oposição em Hong Kong, a ilha rebelde. No mesmo dia da comemoração dos setenta anos de comunismo, uma nova onda de protestos pró-democracia foi detonada no território chinês. Um jovem de 18 anos acabou baleado durante as manifestações.
A despeito dessa oposição, a China continua firme em seus objetivos, que estão recuperando o DNA da nação que, por milênios, foi um dos impérios mais avançados do mundo. A decadência teve início no século XIV. Em 1368, a dinastia Ming (1368-1644), incomodada com a invasão de europeus na Ásia e com o roubo de inovações de origem chinesa (como a pólvora e o papel), tomou a decisão estratégica de isolar a nação, fechando as fronteiras. A tática, no entanto, seguia na contramão do que faziam os europeus, que começavam a se expandir pelos mares. No século XX, o gigante asiático passou por um novo solavanco com a era revolucionária de Mao Tsé-tung, que instalou os comunistas no poder em 1949. Nesse período, o socialista Mao, parceiro da antiga URSS, jogou o país em uma aguda crise. Tão somente nas décadas de 50 e 60 cerca de 45 milhões de chineses morreram de inanição. Até o início de 1980, a nação era majoritariamente agrária, com uma indústria insignificante. Não só isso, as parcas fábricas que lá existiam estavam desatualizadas: 70% delas operavam de forma quase completamente manual. Após a morte de Mao, assumiu Deng Xiaoping (1904-1997), que durante o período de seu antecessor no poder era um perseguido político. O novo líder herdou uma nação em caos, mas iniciou o processo de recuperação.
Sem abandonar o cunho autoritário em relação à própria população, o governante optou por abrir a economia à iniciativa internacional. Promoveu a desestatização de terras agrícolas, alocando os espaços para a criação de galpões e cooperativas focadas na fabricação de produtos de baixo valor — e péssima qualidade. Contudo, na metáfora de Xiaoping, tanto fazia qual era a espécie do “gato” (o produto), contanto que pegasse os “ratos”. E o felino chinês caçou muitas presas. “O país se tornou algo como a ‘fábrica global’. Em apenas três décadas, ele implementou as três revoluções industriais que o Ocidente demorou 250 anos para promover. Hoje, está no topo, encabeçando o que se conhece como a quarta dessas revoluções”, afirmou a VEJA a economista americana (de ascendência chinesa) Linda Lim, especialista em mercados asiáticos e professora da Universidade de Michigan, nos Estados Unidos.
Qual será o próximo passo? Para um vislumbre, vale rever a foto que abre esta reportagem, da decolagem de um foguete chinês. Em 14 de agosto último, a companhia privada LinkSpace, com financiamento estatal, lançou a primeira nave chinesa com tecnologia que permite que ela seja reutilizada. Até essa data, apenas duas empresas, ambas americanas, haviam dominado tal artifício: a SpaceX, do sul-africano Elon Musk, e a Blue Origin, do americano Jeff Bezos, fundador da Amazon. Em 3 de janeiro, a China também havia se tornado a primeira nação a pousar uma sonda no lado oculto da Lua. A escalada da potência asiática rumo ao topo segue inexorável — no espaço e na Terra.
Com reportagem de Victor Irajá
Publicado em VEJA de 6 de outubro de 2019, edição nº 2655