A moeda mais forte do mundo, presente em mais de 80% das transações internacionais, o dólar é tradicionalmente o porto seguro dos investidores em momentos de crise. Com a pandemia da Covid-19, no entanto, a hegemonia da moeda americana como unidade monetária de caráter global passou a ser questionada. O índice DXY, que mede o valor do dólar em relação a uma cesta de moedas cujo maior peso é o euro, caiu 9% desde o ápice da crise provocada pelo novo coronavírus, em março, e alcançou o menor patamar desde 2018. A má gestão da crise sanitária pelo governo de Donald Trump é um dos motivos dessa queda, ainda que indiretamente. A lentidão na reação aos primeiros casos no país e a necessidade de novos lockdowns exigiram do governo sucessivos estímulos para manter a economia americana em funcionamento diante de uma recuperação do emprego aquém do esperado. Na quarta-feira 29, o presidente do Federal Reserve, Jerome Powell, anunciou que as taxas de juros do país serão mantidas perto de zero e que a instituição seguirá com as linhas para garantir a liquidez em dólar até março de 2021.
Desde a eclosão da pandemia nos Estados Unidos, o governo de Donald Trump tem seguido um princípio preconizado pelo economista inglês John Maynard Keynes em meados do século passado — o de que é legítimo sacrificar o déficit fiscal em nome da manutenção de empregos e padrão de consumo em tempos de severa adversidade. Nos últimos quatro meses, mais de 2 trilhões de dólares foram injetados na economia, valor que ultrapassa em quatro vezes os estímulos concedidos em meio à crise do subprime, de 2008. Na segunda-feira 27, os republicanos enviaram ao Senado um projeto para aplicar mais 1 trilhão de dólares na forma de auxílios. Como prevê a lei da oferta e da procura, o aumento da disponibilidade da moeda derruba o seu valor. Essas medidas econômicas são opostas às que ocorreram nos anos 1980 nos Estados Unidos, com a política “Reaganomics”, como ficaram conhecidos os pilares sustentados pelo então presidente Ronald Reagan, que defendia a redução do gasto público. Na década de 90, após a Guerra Fria, os Estados Unidos cresceram significativamente, em razão de o país ter saído das tensas crises de 1980 melhor do que seus pares. Além do desenvolvimento tecnológico decorrente da corrida espacial, houve um patrocínio à globalização. A criação do Nafta, o Tratado Norte-Americano de Livre Comércio, por exemplo, aumentou a comercialização de produtos do país com o Canadá e México.
Ainda que os Estados Unidos apostem muito em tecnologia e inovação científica, a exemplo dos investimentos para a criação de uma vacina contra o coronavírus, o governo de Trump segue uma direção contrária e abre uma janela que fortalece outras moedas internacionais. Além de aumentar o déficit público, Trump é protecionista. Enquanto defende o unilateralismo e ataca os blocos econômicos, do outro lado do Atlântico, a política multilateral da União Europeia contribui com a valorização da moeda do continente. A aprovação do fundo de 750 bilhões de euros para apoio aos países mais afetados pela crise no bloco provocou a queda no valor do dólar em um processo de corrosão que segue desde então — em 20 de março, a cotação da moeda americana estava em 1,06 euro e na quarta-feira 29 fechou em 1,17 euro. Além disso, a Europa conseguiu ter uma gestão mais eficiente da Covid-19, com medidas mais rígidas e breves de lockdown. “Há uma percepção de que a Europa conseguiu se recuperar melhor, ainda que a retomada provavelmente venha a ser lenta e acidentada”, avalia Silvio Campos Neto, analista e sócio da Tendências Consultoria. O estudo “Patterns in Invoicing Currency in Global Trade” (Padrões na Moeda de Faturamento do Comércio Global, em tradução livre), divulgado no mês passado pelo FMI, também sinaliza o crescimento do euro diante do dólar. “Há mudanças rápidas e repentinas no padrão monetário de faturamento do comércio internacional em alguns países europeus e no papel regional dominante do euro fora da Europa e em partes da África”, aponta o relatório.
A perda de valor do dólar só não tem sido mais acentuada por causa do cenário de aversão ao risco trazido pela pandemia, o que levou à procura por títulos públicos americanos mesmo diante de taxas tão baixas, menos de 0,6% para dez anos. E os ativos investidos em poupança no país estão em patamares recordes, mesmo com os juros básicos próximos a zero. A expectativa do mercado é, porém, que o dólar se desvalorize mais quando a pandemia arrefecer e a vacina for aprovada, pois a situação de risco diminuirá. Além disso, o discurso agressivo de Donald Trump contra a China, na tentativa de atrair o seu eleitor conservador, pode ser um tiro no pé, pois uma guerra comercial com a potência asiática tende a enfraquecer a moeda americana. Em 2018, o acirramento das animosidades entre Estados Unidos e China elevou a libra esterlina e o euro e derrubou o índice DXY significativamente.
Outro fantasma que ronda a moeda americana é o da inflação. Os dados mais recentes, de junho, apresentaram um índice de 0,6%, o que lançou a rentabilidade dos títulos americanos para o campo negativo. Não à toa, o ouro tem alcançado patamares elevados, superiores até mesmo à alta recorde registrada em 2011, com a onça troy (cerca de 31 gramas) próxima dos 2 000 dólares. Mas há um dado bom nisso tudo. No Brasil, um reflexo desse novo status do dólar é a relativa estabilidade da cotação, em torno de 5,15 reais, mesmo com a complicada situação fiscal brasileira. É consenso entre os especialistas em câmbio que, não fosse pela liquidez estimulada pelas autoridades monetárias dos Estados Unidos, a diferença entre o real e a moeda americana provavelmente seria maior. “Períodos de fortalecimento e enfraquecimento do dólar se alternam desde 1973, mas é inegável que vivemos um momento complicado para a moeda americana”, diz Simão Davi Silber, professor de economia da USP. Trata-se de um cenário mais que confortável para que outras potências econômicas tentem elevar o status de suas próprias divisas no sistema financeiro internacional.
Publicado em VEJA de 5 de agosto de 2020, edição nº 2698