“Não é frescura”
“Eu me descobri autista aos 30 anos, pouco antes do meu filho nascer, quando tive grandes crises de stress. Até então, cresci como o rapaz diferentão, o fã de heavy metal que tentava se encaixar na turma. Muitos duvidam que eu tenha TEA, pois existe uma visão estereotipada. Acham que minhas restrições são ‘frescura’. Não lido bem com barulho ou reuniões longas. Por observar padrões com rapidez e disciplina, consegui me tornar um especialista em tecnologia.”
Robim Castro Gaia, 36 anos, analista de dados da consultoria Everis
“Você é autista? Nem parece, é tão inteligente e comunicativo.” Frases como essa têm se tornado cada vez mais comuns em escritórios e reuniões virtuais de trabalho. Apesar de ofensivas e baseadas em velhos e equivocados estereótipos, trata-se de um ótimo sinal. No passado, os debates sobre o autismo se baseavam na esteira dos avanços da medicina, girando em torno da infância, das formas de identificá-lo e do papel dos pais para minimizar os danos de um transtorno incurável. Mas essas crianças crescem e precisam tocar sua vida como qualquer adulto, com os mesmos sentimentos e fragilidades, e eventualmente com muito mais habilidades. E essa é a grande mudança. Eis um fato inconteste, cientificamente comprovado, que o mercado de trabalho está assimilando rapidamente: autistas podem ser excelentes profissionais — e excelentes profissionais podem ser autistas.
O Brasil ainda é carente de dados confiáveis. Nos Estados Unidos e no Reino Unido, um em cada cinco autistas já consegue emprego — uma taxa modesta de 20%, mas em franco crescimento, uma vez que a inserção no mercado de trabalho era quase inexistente no passado. Autistas de grau leve podem apresentar algumas dificuldades, como sensibilidade a luz e barulho ou falhas na compreensão de figuras de linguagem — nada que não seja contornável, sobretudo levando-se em conta as contrapartidas. “O cérebro dos autistas tem qualidades específicas que podem e devem ser aproveitadas. Em diversos aspectos, eles são mais eficientes”, diz Joana Portolese, neuropsicóloga da Faculdade de Medicina da USP. Com a propensão ao hiperfoco (estado de concentração intensa), os autistas têm sido especialmente aceitos nos ramos de tecnologia e programação, pois respondem muito bem quando lhes é dado um planejamento. São disciplinados e tendem a se especializar em assuntos de seu interesse (leia os depoimentos ao longo desta reportagem). Há profissões não recomendadas, como cozinheiro ou guarda de trânsito, pois são atividades que geram situações de stress exagerado e imprevistos.
Estudos recentes mostram que há 2 milhões de autistas diagnosticados no Brasil, mas estima-se que o número real possa ultrapassar 3 milhões, devido a diagnósticos tardios e à imensa subnotificação. Segundo a Organização Mundial da Saúde, o transtorno acomete uma a cada 160 crianças, mas estudos nos Estados Unidos apontam incidência bem maior, de uma a cada 59. Esmiuçada pela primeira vez em 1943 pelo psiquiatra infantil austríaco Leo Kanner (1894-1981), a condição passa por constantes releituras. Em 2013, a Associação Americana de Psiquiatria decidiu abarcar diversos tipos de desordens neurológicas, incluindo a síndrome de Asperger — grau mais leve de autismo constantemente relacionado à genialidade —, dentro de uma única definição, o transtorno do espectro do autismo (TEA). No Brasil, um ano antes, a aprovação da lei 12 764, também conhecida como Lei Berenice Piana, tornou-se um marco ao incluir autistas entre os demais portadores de deficiência, garantindo a eles tratamento via Sistema Único de Saúde (SUS) e sua presença no mercado de trabalho pelo sistema de cotas.
Nenhum autista é igual a outro, mas há similaridades como a dificuldade de interação social e a presença de padrões restritos de comportamento, interesses ou atividades. Em suma, há três gradações: o autismo leve ou funcional, em que chamam atenção comportamentos excêntricos ou repetitivos; o moderado, no qual há déficit nas habilidades de comunicação verbal e não verbal; e o severo, quando a capacidade cognitiva é altamente prejudicada, exigindo suporte absoluto. O primeiro grupo é plenamente capaz de viver de forma autônoma, ter filhos e uma profissão. O americano Donald Triplett, hoje com 88 anos, primeira pessoa diagnosticada com TEA, aos 5 anos, demonstra excepcional memória e trabalhou na empresa da família.
“Autistas crescem”
“Não tive boas experiências em entrevistas por cotas e prefiro não me apresentar como autista em meu currículo. Consegui um bom emprego em um processo seletivo convencional e me firmei graças à minha proatividade e hiperfoco. Há muitos programas voltados para a infância, mas autistas crescem. Por isso, decidi criar o projeto Inclusão Humanizada para integrar pessoas como eu no mercado.”
Milena Yamamoto, 30 anos, analista de TI da B2W
Boas iniciativas vêm ganhando impulso nos últimos anos. A Specialisterne é uma das organizações que mais contribuem para a neurodiversidade no Brasil, trabalhando em parceria com empresas como Itaú e Danone. A ONG já propiciou a contratação de cerca de 120 autistas, com 90% de taxa de retenção nos cargos. O processo de capacitação e seleção dura quatro meses, e a chegada ao escritório do colega “atípico” (termo que autistas costumam usar para se definir) exige adaptação e suporte. “Um workshop esclarece aos funcionários tanto sobre o que é o autismo quanto acerca das particularidades da pessoa”, afirma Rute Rodrigues, gerente da Specialisterne. Há algumas recomendações simples de integração que fazem toda a diferença no ambiente de trabalho, como reservar ao autista um local silencioso, com iluminação controlada, e evitar conversas fora de hora e mudança abrupta de rotina.
A neurodiversidade não é um tipo de assistencialismo, mas, sim, parte de uma estratégia lucrativa das empresas. Pesquisa da consultoria McKinsey mostrou que companhias que promovem diversidade em seus quadros têm receitas até 33% maiores. Com a inclusão de minorias, elas conseguem ampliar seus horizontes e atingir suas metas. “Pessoas com visões diferentes trazem soluções mais robustas, o que é fundamental para uma empresa de inovação”, diz Ricardo Neves, CEO da Everis, multinacional de consultoria de Negócios e TI.
“Sou exceção da exceção”
“Eu me orgulho de minhas conquistas, mas é importante ressaltar que sou a exceção da exceção: mulher, autista, negra e da periferia. Consegui me destacar, fundar minha própria empresa e organizar um evento como o Autismo Tech. Tive sorte, acompanhamento médico e boas influências — além, é claro, de meus atributos, como criatividade e raciocínio lógico. Meu sonho é que casos de sucesso como o meu se tornem mais comuns.”
Joyce Rocha, 28 anos, designer e fundadora da startup aTip
Transformação de tal magnitude, evidentemente, tem seus desafios. Uma reclamação recorrente entre os profissionais autistas é sobre a ausência de um plano de carreira. Assim como ocorre com a maioria dos deficientes físicos ou visuais, eles geralmente trabalham como colaboradores, não funcionários contratados, e têm salário mais baixo. Esse é um dos motivos que levam muitos a esconder sua condição e a priorizar processos seletivos tradicionais. Outra razão é o constrangimento provocado por colegas desinformados, que insistem em tratá-los de maneira infantilizada. Esse comportamento tem nome: capacitismo, o preconceito contra deficientes, uma segregação muitas vezes velada. Filmes e séries de TV costumam influenciar as pessoas, fazendo-as olhar para os autistas como incapazes ou, no outro extremo, gênios excêntricos. Na maioria dos casos, porém, são indivíduos que têm fragilidades intensas tanto quanto talentos notáveis — como todo e qualquer ser humano.
Publicado em VEJA de 21 de abril de 2021, edição nº 2734