Conquistas do país são ameaçadas por maré de propostas de retrocessos
Lei das Estatais, reforma trabalhista e marco do saneamento estão na mira de uma onda de projetos, ideias e decisões jurídicas que ganham força
Aos trancos e barrancos, o Brasil conquistou nos últimos anos alguns importantes avanços institucionais e regras melhores para o ambiente de negócios. Entre eles, estão a aprovação da reforma previdenciária e a autonomia do Banco Central. Outro destaque foi a reforma trabalhista, de 2017, que trouxe mais flexibilidade a formas de contratações como para empregos temporários. Ela também decretou o fim do imposto sindical, um resquício da era Vargas que garantia receita certa até para organizações sem atuação relevante e que representavam mal os trabalhadores.
Agora, o Supremo Tribunal Federal está prestes a criar um substituto para ele, a contribuição assistencial. O ministro Gilmar Mendes repentinamente mudou seu entendimento estabelecido há anos sobre o tema e declarou, na última semana, que a obrigatoriedade dessa cobrança sindical seria constitucional. No fim da semana, cinco ministros compartilhavam desse entendimento e faltava apenas um voto para o substituto do imposto sindical ganhar a maioria. Se tal retrocesso acontecer, o trabalhador não sindicalizado obrigatoriamente pagará uma taxa que for aprovada em acordos e convenções coletivas, a menos que declare formalmente se opor a ela. Dessa forma, se inverteria a lógica da reforma trabalhista, que previa que os sindicatos é que deveriam buscar os associados e atrair contribuições. A amigos, Gilmar confidenciou que considera a cobrança “ruim”, mas poderia ser “pior”, e que o STF se “sensibilizou” com a possibilidade de acabar com o sindicalismo no Brasil.
Infelizmente, esse não é o único contratempo que surgiu recentemente para avanços que pareciam garantidos para a sociedade brasileira. Uma maré de propostas de retrocessos, inclusive para temas que deveriam pertencer ao passado, tem avançado nos últimos meses. São projetos, ideias e decisões jurídicas levantadas por integrantes do STF, do governo e congressistas. Muitas vezes em acordo tácito entre eles. Por exemplo, no caso da cobrança sindical, o STF está resolvendo um problema complicado para o governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Durante a campanha eleitoral, Lula falou que procuraria novas formas de financiar a atividade sindical e chegou a ameaçar rever a reforma trabalhista. Com a ajuda do STF, indiretamente, ele pode aplacar a insatisfação do presidente do Solidariedade, Paulinho da Força, preterido pelo petista na partilha ministerial e que nem sequer esteve presente na posse presidencial, em janeiro.
Também estão na lista de propostas de retrocessos o interesse em reverter pontos essenciais da Lei das Estatais, da Lei de Responsabilidade Fiscal e do novo marco do saneamento, para não falar na interrupção de projetos de privatização ou de venda de ativos estatais. Em comum a quase todas essas empreitadas está a possibilidade de abertura de mais espaços para ingerências políticas e de empregar mais aliados na estrutura de governo. “Modificar tudo isso é um equívoco. Quando as coisas estão dando certo, não convêm mudá-las”, afirma a VEJA o ex-presidente Michel Temer, que promoveu em seu governo alguns desses avanços, como a reforma trabalhista. “Conseguir aquelas conquistas foi importante para a sociedade em geral. Reduzimos a inflação de 9,32% para 2,46%, a taxa de juros saiu de 14,25% para 6,5%, reduzimos o conflito entre empregado e empregador. Com a Lei das Estatais, recuperamos a Petrobras e os Correios.”
Agora, até mesmo as agências reguladoras, uma conquista importante da década de 90, correm risco. A ideia é criar conselhos dentro dos ministérios para fiscalizar o trabalho das agências, que obviamente devem ser preenchidos por políticos. O projeto, de autoria do deputado Danilo Forte (União-CE), deve constar no relatório da medida provisória da reestruturação ministerial, que será apresentado nos próximos dias. Ele garante que os cargos serão ocupados por membros da sociedade civil. Evidentemente, a medida não encontra fãs na iniciativa privada. As empresas farmacêuticas assinaram uma nota conjunta em defesa de autarquias como a Agência Nacional de Vigilância Sanitária. “A emenda, se aprovada, desencadeará enorme desestabilização do mercado de saúde no país e colocará em risco a população brasileira”, apontaram em nota.
Mudanças repentinas nas regras e instabilidades jurídicas estão entre os grandes problemas para a economia brasileira, costumam alardear os economistas. Afinal, quais investidores se sentem seguros em aportar recursos em um país onde as leis sofrem guinadas radicais de uma hora para outra? O marco do saneamento é um exemplo disso. Desde a aprovação da matéria, há três anos, já foram contratados cerca de 80 bilhões de reais em investimentos em saneamento, por estimular a iniciativa privada a atuar no setor. É um valor bem acima da média. Nos cinco anos anteriores, foram investidos cerca de 50 bilhões de reais. Dessa forma, a meta de universalização do serviço de água e esgoto até 2033 ficou mais factível. Para atingir esse objetivo, serão necessários cerca de 880 bilhões de reais, o equivalente a 88 bilhões de reais por ano. “O Brasil não tem opção a não ser ampliar a participação privada. O setor público não tem condição de realizar investimentos tão expressivos”, diz o advogado Fernando Vernalha, especialista em direito do Estado. “Precisamos fazer em dez anos o que não foi feito em sessenta.”
O atual governo, no entanto, estragou o momento positivo ao enviar ao Congresso dois decretos mudando o marco e favorecendo as estatais. Eles aumentam o prazo para as fornecedoras públicas se regularizarem e trazem a possibilidade de prestarem o serviço sem necessidade de licitação. “Fundos internacionais que estavam vindo para o Brasil desistiram e mesmo investidores locais pararam de olhar qualquer projeto enquanto o novo marco estiver sob ameaça”, alerta Paulo Uebel, ex-secretário especial de Desburocratização do Ministério da Economia, que ao voltar para a iniciativa privada montou uma consultoria especializada em saneamento. “Já deve atrasar de três a cinco anos as metas de universalização, enquanto essa discussão não for resolvida.” Detalhe: quem mais perde com isso são os quase 35 milhões de pessoas no Brasil que vivem sem água tratada e os cerca de 100 milhões sem acesso à coleta de esgoto (pessoas pobres que este governo diz defender e priorizar).
Pelo menos, nesse tema, o Congresso está fazendo — acertadamente — um jogo duro. Na terça-feira 25, a Câmara pautou em caráter de urgência uma votação que poderia derrubar parte das mudanças propostas pelo governo. O movimento causou um recuo do Planalto, que indicou que revisaria certos pontos dos textos, para evitar uma derrota. Outro projeto que deve enfrentar obstáculos para ser aprovado são as mudanças na Lei de Responsabilidade Fiscal. Ao enviar para o Congresso o texto do novo marco fiscal, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, incluiu o fim da caracterização, pela LRF, de crime de responsabilidade se o presidente não cumprir as metas fiscais. A única punição seria precisar enviar uma carta ao Congresso explicando por que falhou no objetivo.
Ainda mais preocupantes são as alterações propostas na Lei das Estatais, porque prometem unir interesses do governo, do Congresso e do Judiciário em garantir mais cargos a políticos. O ministro do STF aposentado no início de abril, Ricardo Lewandowski, concedeu, antes de sair, liminar retirando a quarentena de três anos para políticos assumirem a direção de empresas públicas. O PT garante não ter nada com isso, já que a provocação à Corte foi feita pelo PCdoB, mas tampouco se posicionou contra o pedido. Inclusive, já aproveitou a brecha para acomodar aliados que ficaram sem cargo nas últimas eleições. São os casos do ex-governador de Minas Gerais Fernando Pimentel, nomeado presidente da Emgea, e do ex-governador de Pernambuco Paulo Câmara, para o Banco do Nordeste. A próxima nomeação na mira do Planalto é da ex-senadora Katia Abreu para a vice-presidência de agronegócios do Banco do Brasil. Dentro do banco, diretores ouvidos por VEJA e contrários a nomeações não técnicas dizem ter esperanças que a Lei das Estatais, mesmo combalida, barre de alguma forma sua indicação. A julgar pela onda de retrocessos, será bem difícil.
Publicado em VEJA de 3 de maio de 2023, edição nº 2839