O mercado imobiliário de luxo foi um dos poucos a passar ileso pela pandemia de Covid-19. O isolamento social impulsionou a busca por maior qualidade de vida e consagrou o modelo de trabalho remoto, segundo o qual as pessoas podem ser úteis e ativas em qualquer endereço. Acompanhando os novos ventos, uma modalidade vem ganhando terreno — em alto-mar. São os navios de cruzeiro residenciais, uma proposta que parece absurda à primeira vista, mas que tem seduzido um número crescente de proprietários interessados em singrar os oceanos com suas famílias, e parar de tempos e tempos em portos mundo afora para desfrutar paisagens estonteantes. Pensando bem, a ideia não é tão extravagante assim.
O navio MV Narrative, da empresa Storylines, em construção no Porto de Split, na Croácia, e com viagem inaugural programada para 2024, é a nova sensação desse mercado. Com unidades valendo, no mínimo, o equivalente a 400 000 dólares, mais uma taxa anual que varia de 65 000 a 200 000 dólares para cobrir os serviços de manutenção e alimentação, o condomínio certamente não está ao alcance de todos, mas aparece como alternativa para quem deseja viver em alto-mar.
Seus concorrentes são mais caros. Uma vaga no The World, pioneiro no setor, não sai por menos de 2 milhões de dólares. Em atividade desde 2002, a maior embarcação residencial privada (tem 196 metros de comprimento) ostenta a primeira quadra de tênis flutuante e uma adega com capacidade para 12 000 garrafas. No navio Utopia, a mais barata das 190 casas sai por 3,9 milhões de dólares, enquanto no Somnio, também previsto para estrear em 2024, descrito como “o endereço mais exclusivo do mundo”, as unidades custam a partir de 11 milhões de dólares. Em todos os casos, as negociações são abertas apenas mediante convite.
O senso comum leva a crer que os muito ricos, donos de jatinhos e mansões pelo mundo, preferem viajar em iate particular com um batalhão de funcionários, mas um dos diferenciais dos condomínios flutuantes são as experiências em grupo. “Um morador da MV Narrative é alguém que procura aventura, mas dentro de um senso de comunidade”, diz o CEO da Storylines, Alister Punton. Ao contrário dos cruzeiros tradicionais, em que a passagem por pontos turísticos pode durar apenas algumas horas, as paradas feitas pelos condomínios flutuantes são mais longas e, portanto, mais proveitosas. Não é exagero dizer que a iniciativa tem dado certo: a maior parte das 547 residências já foi vendida.
Curiosamente, logo nas primeiras páginas do folheto promocional da Storylines, há uma breve referência ao Brasil, com uma frase motivacional do escritor Paulo Coelho: “Quando você quer uma coisa, todo o universo conspira para que possa realizar o seu desejo”. A companhia, no entanto, segue normas de confidencialidade e não revela se há brasileiros entre os residentes, que chama de “comunidade global”.
Até aqui, os atuais moradores desses navios e a maior parte dos compradores têm sido de empresários com flexibilidade de agenda ou aposentados com recursos financeiros. Mas há um aumento da procura por jovens, incluindo famílias com filhos pequenos e os chamados nômades digitais, pessoas que trabalham de forma remota. Supostamente, a cobertura completa de internet e a presença de professores, lojas de conveniência, correios e enfermarias prometem atender a todas as necessidades dos proprietários. É o mínimo. Afinal, quem gasta uma grana dessas não quer viver à deriva.
Publicado em VEJA de 26 de janeiro de 2022, edição nº 2773