Decepção latina
O Brasil e seus vizinhos perderam espaço diante de outros emergentes. Para voltar a crescer, é crucial fazer com que as pequenas empresas possam expandir-se
Não, não há dúvida: na primeira década e meia deste século, os ventos sopraram a favor da América Latina. A explosão das commodities — quando a alta dos preços de grãos e minérios no mercado global turbinou a economia da região — fez com que o Brasil e seus vizinhos vislumbrassem uma nova era, na qual o subdesenvolvimento ficaria confinado aos livros de história. Foi um período exuberante, em que parcelas da população tradicionalmente esquecidas se viram absorvidas pelo mercado de trabalho formal. A fartura permitiu reduzir a desigualdade social, e políticas públicas locais se tornaram modelo mundo afora. Contudo, apesar da euforia e dos avanços, uma análise mais criteriosa revela que, comparada aos indicadores dos demais emergentes, a performance dos latinos deixa muito a desejar. É o que mostra um estudo da consultoria americana McKinsey ao qual VEJA teve acesso em primeira mão.
Os números são acachapantes. Entre 2000 e 2016, o PIB da América Latina cresceu, em média, 2,8% ao ano. No mesmo intervalo de tempo, o grupo dos demais países em desenvolvimento — um conjunto de 56 nações que inclui Índia, Indonésia, África do Sul e Rússia — teve uma expansão anual média de 4,8%. A discrepância é ainda maior se for levada em conta a China, que fez sua economia inflar 9,5% ao ano naquele mesmo período — e por isso precisou ser separada dos outros emergentes para não distorcer os dados. E por que os latinos ficaram para trás? Resposta em uma palavra: produtividade. “Um pedaço importante do crescimento veio do aumento da força de trabalho, mas sem o aumento de produtividade com ganhos de renda esse crescimento bate em um teto, não avança”, diz Vijay Gosula, sócio da McKinsey.
O caso chinês evidencia a importância desse fator para um crescimento robusto e sustentável: 94% da expansão de seu PIB no intervalo analisado é creditada ao aumento da produtividade, especialmente na indústria. Isso significa que cada trabalhador produziu mais e mais riqueza no mesmo espaço de tempo. No grupo de outras nações emergentes, esse motor possibilitou 63% da expansão registrada. Na América Latina, o aumento na eficiência foi responsável por meros 28% do desenvolvimento; o grosso do crescimento se deveu à entrada de 66 milhões de pessoas no mercado de trabalho.
Usualmente, a educação de baixa qualidade é apontada como a maior vilã da produtividade latino-americana. Não sem razão: países como a Malásia deram um estirão de desenvolvimento ao elevar a quantidade e a qualidade de suas escolas e universidades nos anos 1990, o que transformou sua capital, Kuala Lumpur, de entreposto colonial em uma das cidades mais modernas do globo. Existe, entretanto, um problema mais fácil de atacar, e com efeitos mais imediatos: a escassez de companhias de médio porte na América Latina. Para cada trilhão de dólares do PIB local, há na região 65 empresas com faturamento anual superior a 50 milhões de dólares. A média entre as demais economias emergentes é de 100. Trata-se de um cenário que isola grandes companhias de um lado e, do outro, forma uma cauda longa de pequenos negócios, muitos deles informais — e extremamente ineficientes. “As empresas médias especializam o trabalho e têm porte para investir em tecnologia, fundamental para a produtividade”, explica Gosula.
Que fique claro: o grande número de pequenas empresas não é um problema em si. O empreendedorismo só pode ser salutar para uma economia. O que atrapalha o desenvolvimento dos latinos é a dificuldade que a pequena empresa tem para dar o salto e se tornar uma companhia média, condição na qual a produtividade avança exponencialmente e ainda gera um positivo efeito cascata. Empresas maiores oferecem melhores salários, o que dá aos trabalhadores vigor para consumir, estimulando a economia de forma sustentável. Apesar de grande parcela da população latino-americana haver deixado a linha da pobreza, o ciclo não se fechou. Na região, 64% do consumo vem dos 90% com menor poder de compra — o restante é bancado pelos 10% mais ricos. É a mesma proporção observada na África Subsaariana. Na Ásia oriental e na região do Pacífico, por exemplo, onde há emergentes como Filipinas e Tailândia, a parcela da população com renda menor é responsável por 73% do consumo.
Solucionar esses dois entraves estruturais — a questão das companhias médias e o baixo consumo das classes mais pobres — pode alterar o quadro econômico da América Latina. A McKinsey estima que, superados tais obstáculos, seja possível aumentar em 50% o ritmo de crescimento da região até 2030, para chegar a uma média de 3,4%, adicionando cerca de 1 trilhão de dólares ao PIB local. Para isso, os países latinos precisam garantir estabilidade fiscal, a fim de proporcionar crédito barato, e simplicidade regulatória e tributária, de modo que as pequenas empresas não derrapem na burocracia. No Brasil, por exemplo, é justamente quando as companhias aumentam o faturamento acima de 4,8 milhões de reais por ano — o que as obriga a sair do Simples, programa que facilita o pagamento de impostos — que elas se atrapalham. Uma boa referência é o México, que teve sucesso em certa medida com a abertura comercial, capaz de atrair novos mercados consumidores para suas empresas, aliada a uma simplificação da regulamentação. Durante os anos 2000, a produtividade industrial do país cresceu 5,6% em alguns setores. Ganhos como esses exigem atenção enorme com a educação, para que a produtividade não perca o compasso com a evolução da força de trabalho. Por fim, cabe aos governos ganhar eficiência. O peso da burocracia também recai sobre a população, roubando tempo produtivo e complicando a interação com o mercado de trabalho. Uma das travas da Argentina, para citar um caso, é a dificuldade de comprar dólar oficialmente. “A agenda de melhorias a fazer pode mudar de país para país”, acredita Enestor dos Santos, economista-chefe para o Brasil e a América Latina do BBVA Research, braço de pesquisa do banco espanhol. É preciso aproveitar melhor os bons ventos.
Publicado em VEJA de 29 de maio de 2019, edição nº 2636
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