Os riscos econômicos da queda de braço entre governo e BC sobre juros
A única certeza na solução da complicada questão é que a saída não virá de confrontos. Mas, sim, de racionalidade
Habitualmente restrita ao universo rarefeito das discussões sobre finanças e economia, a política monetária do Banco Central ganhou visibilidade inaudita nos últimos dias. Em protesto contra as altas taxas de juros, um punhado de manifestantes desenrolou bandeiras, gritou palavras de ordem e queimou — de forma absolutamente medieval — um boneco do presidente do BC, Roberto Campos Neto, na terça 21, na Avenida Paulista, em São Paulo. No dia anterior, representantes das montadoras Volkswagen, Hyundai, GM e Stellantis culparam o custo elevado do crédito pelo encalhe de veículos em seus pátios, motivo que as levou a decretar férias coletivas de seus funcionários. O presidente da Fiesp, Josué Gomes da Silva, por sua vez, chamou de “pornográficas” as taxas atuais. Todos fazendo coro ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que desde que pisou novamente no Palácio do Planalto vocifera que o BC e seu presidente dificultam a retomada econômica do país nesse início de governo.
Tamanha pressão tem um objetivo claro: sinalizar que o atual índice de 13,75% ao ano da taxa Selic se tornou fonte de preocupação entre os mais diversos setores da economia. Mesmo com todo o barulho, o Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central decidiu, na quarta 22, manter o índice imóvel na posição, a mais elevada desde 2016. E foi além. No documento que acompanhou a decisão, informou que o índice pode voltar a subir, caso o cenário inflacionário não seja favorável a um movimento de baixa. O mercado projeta que o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), principal medidor da inflação, chegue a 5,95% ao fim de 2023, nível superior ao teto da meta, de 4,75%. “O Comitê enfatiza que os passos futuros da política monetária poderão ser ajustados e não hesitará em retomar o ciclo de ajuste caso o processo de desinflação não transcorra como esperado”, escreveram os membros do Comitê de Política Monetária. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, considerou “preocupante” a decisão e o teor do documento divulgado pelo BC. “No momento em que a economia está se retraindo, o Copom chega a sinalizar uma subida da taxa de juros”, disse ele.
Ainda que estritamente técnica e alinhada ao cânone da ortodoxia econômica, a política de juros altos adotada desde 2021 apresenta efeitos adversos, como a contração do PIB no último trimestre de 2022 e a diminuição do estoque de crédito, que encolheu em cerca de 20 bilhões de reais entre dezembro e janeiro, a primeira queda em dois anos. Os juros mais altos e o encarecimento do crédito também afetam a capacidade das famílias de honrar dívidas, principalmente de bens duráveis. O endividamento das famílias saltou de 38% em 2018 para 49,8% em 2022, à medida que as condições financeiras se tornam mais apertadas. O governo tem usado esses argumentos para pressionar o BC, mas a solução do problema não é tão simples, uma vez que o risco inflacionário ainda existe. “O baixo nível de investimento e produtividade no Brasil é um problema estrutural que afeta o desempenho econômico e acaba gerando inflação quando há crescimento”, diz Alex Agostini, economista-chefe da Austin Rating. Isso explica por que, durante o governo Dilma, a tentativa de combinar a redução das taxas de juros com o crescimento econômico resultou na crise de 2015.
A estratégia de elevação dos juros para combater a inflação não é uma exclusividade do Brasil — na verdade, ela afeta todo o planeta depois da pandemia. No dia 16, no auge da crise que praticamente quebrou o banco Credit Suisse e levou à sua compra pelo concorrente UBS, o Banco Central Europeu seguiu com sua política de elevação das taxas e subiu o índice em meio ponto porcentual. Em pronunciamento, na quarta 22, a presidente do banco, Christine Lagarde, afirmou que o foco absoluto da instituição está no combate à ascensão da inflação no bloco, hoje em 8,5%. Nos Estados Unidos, o Federal Reserve também manteve a estratégia de alta, mesmo depois da quebra do Silicon Valley Bank, que foi à bancarrota justamente por ter seus ativos lastreados em títulos do Tesouro com juros mais baixos do que os que estão em vigor atualmente. Com isso, o Fed subiu os juros americanos em 0,25 ponto porcentual, que agora se mantêm na faixa referencial de 4,75% a 5% ao ano. O objetivo é baixar a inflação dos atuais 6% para 2%. Por aqui, o comunicado do Copom que justificou a manutenção dos juros no patamar atual deixou claro que entre os fatores de risco para a inflação brasileira, hoje em 5,6%, estão “a incerteza sobre o arcabouço fiscal e seus impactos sobre as expectativas para a trajetória da dívida pública”. Costurado em ritmo de urgência pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, justamente para demonstrar o compromisso do governo com a responsabilidade fiscal, o arcabouço deve ser anunciado apenas no início de abril, depois da viagem de Lula à China. A postergação foi uma decisão do presidente, que pediu alterações no plano de Haddad e equipe, e queria os membros do governo aqui — e não a 17 000 quilômetros de distância — no anúncio. Em resposta à ansiedade do mercado em torno o arcabouço, Lula foi irônico (e um tanto desplugado da necessidade econômica atual). “Não precisamos ter a pressa do setor financeiro.”
Mesmo sem a divulgação oficial, o pacote de controle de gastos já enfrenta artilharia pesada de alas do PT. Lamentavelmente, o próprio presidente é partidário de mecanismos mais frouxos que permitam o cumprimento de seus compromissos de campanha e, claro, financie novas promessas para 2026. A questão, porém, não é política. “O novo arcabouço fiscal é fundamental para o Banco Central avaliar seu real impacto. Se for visto como algo compatível com a perspectiva de queda da inflação, o BC passa a ter espaço para redução das taxas de juros”, diz Silvio Campos Neto (nenhum parentesco com o presidente do BC), economista da Tendências Consultoria. “No cenário atual, é crucial que qualquer mudança nas taxas de juros seja feita com segurança, baseada em informações concretas”, explica. A única certeza na solução do complicado dilema dos juros é que a saída não virá de confrontos e quedas de braço. Mas, sim, de racionalidade.
Publicado em VEJA de 29 de março de 2023, edição nº 2834