Disputa em torno da comissão do Orçamento trava o avanço das reformas
Briga de poder na Câmara que ameaça prejudicar o andamento de projetos relevantes para o futuro da economia
Do bolo de recursos que compõem o Orçamento federal proposto pelo governo para 2021, apenas uma fatia de 6% não estará comprometida com gastos obrigatórios, como despesas com pessoal e os dispêndios com saúde e educação. É uma fração do total, mas suficientemente significativa a ponto de comprometer a estratégia política e econômica do governo. Trata-se de 96 bilhões de reais, dinheiro de que o Executivo disporá para investir e que ainda não está empenhado. O problema é que para esse montante ser liberado, o Congresso precisar aprovar em uma janela de tempo extremamente curta, entre as eleições municipais e o recesso no começo do ano. Para piorar, trava-se na Câmara uma acirrada disputa de poder em torno da presidência da Comissão Mista de Orçamento (CMO), o que aprofunda o impasse. No passado, entraves como os atuais eram de pouca relevância, uma vez que o Orçamento em si era uma peça de ficção invariavelmente desrespeitada. A situação hoje é bem diferente, dados os parâmetros rígidos de respeito aos limites da responsabilidade fiscal e ao teto de gastos. Tanto que a equipe do ministro da Economia, Paulo Guedes, está preocupada com a demora e a indefinição em torno do assunto.
A briga pela presidência da CMO transformou a Câmara dos Deputados em um campo de batalha. De um lado, o líder do Centrão, o deputado Arthur Lira (PP-AL), resolveu fazer da questão uma disputa de força com o presidente da Casa, Rodrigo Maia (DEM-RJ). Lira trabalha pela nomeação de Flávia Arruda (PL-DF) para liderar as discussões da comissão. Maia, por sua vez, apoia o deputado Elmar Nascimento (DEM-BA). Depois de três sessões da Câmara serem derrubadas no plenário por falta de quórum, Maia declarou, na terça-feira 27, que “quem está obstruindo a pauta e não garantindo quórum é a base do governo”.
Para o presidente da Câmara, a ala encabeçada por Lira — e que apoia o presidente Jair Bolsonaro — pode se tornar a responsável pelas dificuldades que o governo enfrentará nas próximas semanas para aprovar pautas essenciais para o seu futuro. “Sem a votação, torna-se mais difícil tocar a agenda reformista para a frente, e ainda ressalta-se a falta de convicção do Poder Executivo em torno de reformas e privatizações”, diz Alexandre Manoel, ex-secretário de avaliação e planejamento do Ministério da Economia.
A indefinição em torno do Orçamento de 2021 congela a discussão de questões fundamentais para o alívio das contas públicas, como a reforma administrativa e a PEC Emergencial, além da reestruturação do sistema tributário. Outra discussão crucial que acaba atravancada é a definição de onde virão os recursos para o programa Renda Cidadã, que deve substituir o auxílio emergencial pago durante a pandemia e garantir a popularidade do presidente Jair Bolsonaro entre os mais pobres. O senador Marcio Bittar (MDB-AC), relator do projeto do Orçamento do governo, segue imbuído de encontrar uma saída para montar esse programa. Mas, até agora, todas as soluções apresentadas pelos parlamentares da base governista e pela equipe econômica acabaram sendo rechaçadas pelo presidente. Recentemente chegou-se até a cogitar a liberação dos cassinos no país como forma de custear o benefício. “O governo está batendo cabeça e não sabe de onde vai tirar os recursos. Quando se tem muitas alternativas, acaba-se não tendo nenhuma”, diz a senadora Simone Tebet (MDB-MS).
Mesmo com a forte resistência do presidente em realizar cortes para financiar o projeto e suas duras críticas a propostas anteriores, o ministro Guedes ainda não desistiu de convencê-lo a seguir por esse caminho. “É necessário que o governo encontre uma forma saudável de financiar o programa. O auxílio emergencial foi fundamental para a retomada do consumo, e para a consequente maior arrecadação de impostos e manutenção de empregos”, diz Marcílio Marques Moreira, ex-ministro da Fazenda.
Com a situação indefinida, Maia reconhece as dificuldades na costura do projeto orçamentário e admite que a votação do Orçamento pode ficar para março do ano que vem, uma solução que, apesar de não inédita, seria muito longe do ideal. “Chegaremos a 2021 piores do que deveríamos, sem Orçamento ou gestão por parte do governo federal”, afirma Antonio Delfim Netto, ex-ministro da Fazenda. “O Executivo se exime quando tem de tomar decisão desagradável. Seu papel é decidir e é triste reconhecer que uma disputa de poder bloqueie as discussões.” O governo pode até começar o ano sem Orçamento definido, mas pode pagar caro por não ter agido de forma contundente para abrir o caminho de propostas que são cruciais para o futuro do país.
Publicado em VEJA de 4 de novembro de 2020, edição nº 2711