Comandante-chefe da economia brasileira, o ministro Paulo Guedes coleciona declarações polêmicas sobre o câmbio. Em novembro do ano passado, embalado pelo sucesso da reforma da Previdência, disse que, caso a moeda americana, então na faixa dos 4 reais, chegasse ao valor de 5 reais, seria um grande negócio para o Brasil. Três meses depois, em 12 de fevereiro, com a cotação em 4,35 reais, disparou a desastrada comparação em que chamava os tempos de dólar a 1,80 real de “festa danada”, com “empregada doméstica indo para a Disneylândia”. Em março, quando o valor girava nos 4,66 reais, afirmou que os 5 reais só seriam alcançados se ele fizesse “muita besteira”. Até a última quarta-feira, 20, quando o pregão fechou com o dólar em 5,69 reais, Guedes não havia feito novos comentários sobre o tema. Ainda bem. Com a pandemia de coronavírus, o valor do dólar tornou-se um dos componentes da perspectiva tenebrosa que ameaça a economia do país. A moeda nacional despencando ladeira abaixo deixou de ser apenas um incômodo para brasileiros que têm interesse em viajar para o exterior ou o desejo de consumir produtos importados para se transformar em um problema bem mais sério. A escalada do dólar perante o real é um reflexo direto da instabilidade que o Brasil atravessa e da incapacidade do governo federal de gerir a contento a crise sanitária decorrente da Covid-19. Trata-se basicamente de uma crise de confiança no país.
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Clique e AssineEntre os economistas é praticamente consenso que a deterioração do ambiente político associada à forma errática com que o governo vem conduzindo o combate ao coronavírus é o principal fator para o desnível cambial. O avanço sem controle da enfermidade — além das trocas recentes no Ministério da Saúde e da obsessão do presidente Jair Bolsonaro pela adoção da cloroquina como terapia para a doença, mesmo sem respaldo da comunidade científica — também adiciona componentes de risco à economia. Ao mesmo tempo, o inevitável aumento nos gastos públicos para o enfrentamento da crise sanitária com estímulos à retomada acrescenta um elemento extra às dificuldades. Juntas, tais circunstâncias formam uma combinação nefasta que tem afugentado os investidores internacionais. No último dia 12, a Bolsa de Valores de São Paulo, a B3, divulgou um levantamento em que demonstra a saída do equivalente a 72,9 bilhões de reais em capital estrangeiro entre 1º de janeiro e 8 de maio deste ano. “Com os problemas que estamos enfrentando e a taxa de juros abaixo dos 4% ao ano, os estrangeiros que nos viam como uma possibilidade de diversificação de portfólio estão migrando seus investimentos para países menos arriscados”, explica Orlando Assunção, professor de economia da Fundação Armando Alvares Penteado (Faap). Em meio à crise global provocada pela pandemia, o real não é a única divisa a se depreciar em relação à moeda americana. Quase todas as moedas relevantes para o comércio internacional têm sofrido com esse fenômeno. Mas a fuga massiva de capital estrangeiro do Brasil fez com que o real apresentasse o pior desempenho em todo o mundo.
No mesmo dia em que a B3 apresentou em números a debandada dos investidores internacionais, uma avaliação publicada pela consultoria internacional de investimentos Gavekal Research, com sede em Hong Kong, teve grande repercussão no mercado financeiro do Brasil. No artigo, o economista Armando Castelar, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre-FGV), aponta a desvalorização do real como um dos indicadores do aumento da desconfiança global sobre o país. O cenário projetado é de um rombo nas contas públicas próximo a 14% do produto interno bruto, elevando a dívida bruta a 93% do PIB. “Meu conselho a investidores seria não correr para um prédio que está em chamas. Neste momento, é melhor deixar o Brasil para especialistas, oportunistas de longo prazo e aqueles sem outras opções”, escreveu. Para tornar a situação ainda mais desalentadora, as reformas estruturais que impulsionaram o otimismo dos investidores estrangeiros no ano passado parecem, agora, mais distantes de sair do papel. “A falta de capacidade do Brasil para lidar com ajustes no setor público sinaliza a possibilidade de haver um aumento da inflação no futuro”, analisa Guillermo Ossés, chefe de estratégias da consultoria britânica Man GLG, que deixa claro seu pessimismo com o futuro brasileiro. Esse sentimento, aliás, permeia uma parcela importante do mercado. Nos últimos três meses, o índice risco-país do Brasil atingiu 397,3 pontos, patamar semelhante ao registrado no governo de Dilma Rousseff. Para piorar, a agência de análise de crédito Fitch pôs em perspectiva negativa os ratings do país e de 26 empresas nacionais.
Em uma ofensiva para não perder o controle da moeda, o Banco Central, presidido por Roberto Campos Neto, vem atuando no mercado de uma maneira que não se via desde 2008. A instituição tem se desfeito de parte das reservas internacionais por meio de leilões de dólares à vista. No fim de abril, as reservas em moeda estrangeira estavam em 339 bilhões de dólares, quase 47 bilhões de dólares menos do que o valor registrado em agosto de 2019. E a queima só não é maior porque parte dos leilões é feita por swap, mecanismo semelhante ao da venda de dólares no mercado futuro. Ou seja, para não se desfazer das reservas agora, o BC compromete tais recursos a longo prazo. Apesar de parecer assustadora, tal medida é a melhor a ser tomada para evitar que a espiral negativa da moeda brasileira se acentue. “É praticamente consenso que o volume de reservas do país está acima do necessário. E o Banco Central vem sendo até comedido na atuação das reservas. Há espaço para ser agressivo, e ele passou a ser ultimamente”, diz Sergio Goldenstein, ex-diretor do BC.
Ainda que o ministro Guedes mostrasse otimismo no início da alta do dólar, poucos imaginavam que a moeda poderia chegar a um nível próximo de 6 reais. Da mesma forma, dado o cenário de hoje, raros são os vaticínios de que ela voltará tão cedo às cotações do passado. São vários os fatores a considerar antes de apostar em uma queda. Nas atuais circunstâncias, questões de rotina do governo começam a ser tão importantes quanto a situação fiscal do país. Um exemplo é o descompasso entre a pressão do presidente Jair Bolsonaro para a reabertura das atividades afetadas pela quarentena e a completa apatia do poder público na orientação às entidades ligadas ao comércio e indústria para garantir a segurança dos trabalhadores. Trata-se de um processo crucial para evitar uma nova onda de casos de Covid-19 no retorno ao trabalho. “A estabilização do dólar depende de condições externas, mas de internas também. Não se sabe quantos testes de fato podem ser feitos no Brasil ou se a produção de equipamento de proteção é suficiente e acessível aos trabalhadores. São fatores importantes para pensar na retomada da atividade econômica”, diz Joaquim Levy, ex-ministro da Fazenda no governo Dilma e ex-presidente do BNDES na gestão Bolsonaro.
Apesar de a teoria econômica sugerir que um câmbio mais desvalorizado tende a permitir o florescimento da indústria e do turismo local, a atual escalada do dólar não deve favorecer esses setores no momento. A geração de empregos e o fortalecimento da indústria dependem de investimentos que, sejam locais, sejam internacionais, só se materializam em condições estáveis. Hoje, a desvalorização acentuada da moeda não é oportuna nem mesmo aos exportadores de manufaturados, dado o declínio do comércio global. No melhor dos mundos, isso pode até acontecer, mas setores dependentes de matérias-primas importadas, como o automobilístico, o farmacêutico ou o eletroeletrônico, vão sofrer. “A alta do dólar não é um problema restrito a pessoas que vão passear em Miami ou Orlando, uma parcela de menos de 4% da população”, afirma Samuel Pessôa, da Fundação Getulio Vargas. Evidentemente, o governo pode se acertar, realizar privatizações e concessões e aprovar as reformas (leia a coluna de Murillo de Aragão, na pág. 55). Mas dificilmente tudo isso vai ocorrer num curto espaço de tempo. Os economistas consultados pelo Banco Central apostam que o dólar se manterá, ao menos até o fim deste ano, acima de 5 reais. Até lá, tanto os brasileiros que quiserem visitar a Disney quanto os que precisam fazer negócios com fornecedores internacionais terão de gastar mais. Bye-bye, Mickey.
Publicado em VEJA de 27 de maio de 2020, edição nº 2688