Há consenso entre políticos e especialistas de que a economia será decisiva para o resultado da próxima eleição presidencial. Com o avanço da vacinação contra a Covid-19, temas como crescimento do PIB, desemprego e inflação subiram posições na lista das principais preocupações do eleitor. Nessa seara, Jair Bolsonaro enfrenta um momento desfavorável. Apesar de uma leve redução nos últimos meses, o desemprego atinge 14 milhões de pessoas. A inflação oficial ultrapassou a casa dos dois dígitos nos doze meses encerrados em setembro e deve fechar o ano acima da meta fixada pelo governo mesmo com os sucessivos aumentos da taxa básica de juros promovidos pelo Banco Central. O Fundo Monetário Internacional (FMI) revisou para baixo a previsão de expansão da economia brasileira em 2022, de 1,9% para 1,5%. Já a pobreza voltou a subir, segundo a Fundação Getulio Vargas (FGV). Candidato à reeleição, Bolsonaro alega que não pode ser responsabilizado sozinho por esses problemas, mas o fato é que, conforme as pesquisas, a maioria dos entrevistados culpa o presidente pelas mazelas econômicas, o que ajuda a explicar a reprovação recorde a sua administração — de 53%, de acordo com o Datafolha.
Em conversas com aliados, Bolsonaro admite sua preocupação com a situação, mas prefere manter o otimismo com relação a 2022. Ele acredita nas projeções do ministro da Economia, Paulo Guedes, para quem a economia crescerá 5% este ano — na comparação com a base achatada de 2020, quando houve retração de 4% — e estará a pleno vapor durante a campanha eleitoral. O presidente também espera que Guedes e a base aliada no Congresso cheguem a acordos que destravem medidas de forte apelo popular, sobretudo a ampliação do principal programa federal de transferência de renda, o Bolsa Família, que será rebatizado de Auxílio Brasil. O plano governista destinado a estender a rede de proteção social parece exequível, mas o diabo, como reza a sabedoria popular, está nos detalhes. Não bastassem as dificuldades de mérito, como a indefinição sobre uma fonte para custear o Auxílio Brasil turbinado, a relação entre Guedes e o Centrão, que nunca foi das melhores, degringolou nos últimos dias. A rusga ficou visível com a decisão do plenário da Câmara dos Deputados de convocar o ministro para explicar os recursos que ele mantém em paraísos fiscais. Não há nenhuma irregularidade nisso, mas o desgaste é inevitável.
A votação trouxe dois recados contundentes para o chefe da equipe econômica, que diz ter declarado os valores aos órgãos competentes e não ter cometido ilegalidade. Primeiro recado: a convocação foi aprovada por 310 a 142, portanto recebeu apoio superior ao necessário para aprovar até mudanças na Constituição. Segundo recado: a nata do Centrão — formada pelo PP do ministro Ciro Nogueira (Casa Civil), o PR do ministro João Roma (Cidadania) e o PL da ministra Flávia Arruda (Secretaria de Governo) — aderiu à ofensiva contra o ministro. A base de apoio a Bolsonaro não quer a demissão de Guedes. Parte dela até sonha com isso, mas sabe que o presidente não tomará uma decisão nesse sentido, já que o ministro ainda é uma âncora importante do governo ao simbolizar compromissos com o teto de gastos e a modernização do Estado. Na prática, Guedes segura parte relevante do mercado financeiro, entre outros atores, na aliança bolsonarista. Não é pouca coisa, ainda mais no momento de maior fragilidade política do mandatário.
Com o cerco em curso, os parlamentares pressionam o ministro a atender a uma série de demandas, de cargos à liberação de recursos orçamentários, principalmente para obras na Região Nordeste, assunto que provocou desgaste entre Guedes e o ministro do Desenvolvimento Regional, o ex-deputado Rogério Marinho (RN). Pode ser só coincidência, mas, depois de aprovada a convocação de Guedes pela Câmara, o Ministério da Economia anunciou a saída da economista Solange Vieira da presidência da Superintendência de Seguros Privados (Susep). Ainda não foi escolhido o sucessor dela no cargo, que é cobiçado há bastante tempo por políticos do PP e do PTB. Alguns aliados de Bolsonaro também querem aproveitar o momento para tentar convencer o presidente a retirar atribuições de Guedes, recriando, por exemplo, o Ministério do Planejamento. Eles argumentam que o chefe da nova pasta poderia oxigenar o debate sobre os rumos da economia dentro do governo, que hoje nem sequer existe. “O Guedes está muito desgastado no Congresso, mas é muito difícil ser demitido pelo presidente, que aposta na recuperação da economia a partir de janeiro”, diz um dos mais influentes ministros do governo.
Líderes do Centrão que estão fechados até aqui com o projeto de reeleição de Bolsonaro cobram mais comprometimento do Ministério da Economia com iniciativas capazes de melhorar a popularidade da cúpula do governo — e não só do presidente da República. Como ainda não foi encontrada uma forma de bancar o aumento do valor do benefício e do número de beneficiados pelo Bolsa Família/Auxílio Brasil, alguns integrantes da ala política do governo defendem a prorrogação do auxílio emergencial, que acaba este mês. A equipe econômica é contra. Em entrevista nos Estados Unidos, Guedes declarou que só haverá extensão do auxílio emergencial caso haja recrudescimento da pandemia no Brasil: “Se tivermos um aumento na doença, faremos o mesmo que antes. Nós aumentaremos os gastos com proteção para os mais vulneráveis. Mas não é isso o que está acontecendo, com vacinação em massa e volta segura ao trabalho”. Contrariados, os políticos pressionam para que o ministro adicione novos ingredientes a sua análise, que, segundo eles, não pode levar em conta apenas a situação fiscal. O recrudescimento da pobreza e da fome, com seus impactos explosivos em termos eleitorais, também deveria ser considerado, costumam repetir expoentes do Centrão.
Eles lembram que em 2020, quando implantou o auxílio emergencial com a ajuda do Congresso, o governo Bolsonaro bateu seu recorde de aprovação — 37%, de acordo com o Datafolha. Do fim do ano passado para cá, a curva se inverteu, e a rejeição disparou, inclusive entre quem ganha até dois salários mínimos, a base da pirâmide social e do eleitorado. Uma nova prorrogação do auxílio emergencial seria uma forma de tentar estancar essa sangria, que pode inviabilizar não apenas a reeleição de Bolsonaro, mas as chances eleitorais de ministros como João Roma, pré-candidato ao governo da Bahia. Titular da Cidadania, pasta responsável pelos projetos sociais da administração federal, Roma, que é deputado federal licenciado, tem se estranhado com Guedes. Por enquanto, o ministro da Economia resiste à pressão, rejeita a prorrogação do auxílio emergencial e planeja o reajuste do Bolsa Família (Auxílio Brasil) para 300 reais, valor superior ao do tíquete médio do programa, que hoje é de 189 reais. Guedes também estuda ampliar o número de beneficiários, de 14,7 milhões para 17 milhões. Tudo isso, claro, se o Congresso aprovar uma fonte para bancar a iniciativa.
O núcleo político do governo quer uma meta mais ousada e um valor de pelo menos 400 reais, sob a alegação de que a inflação “comerá” o ganho proposto por Guedes e, assim, reduzirá as chances de os governistas recuperarem a popularidade. Para o ministro da Economia, há exagero e alarmismo nesse raciocínio. Nas conversas com Bolsonaro, Guedes alega que, com o avanço da vacinação, o retorno do trabalho presencial e a retomada da produção, a economia voltará aos trilhos. A inflação, por exemplo, já teria batido no teto e tenderia a recuar daqui em diante. Outro ministro acrescenta que a crise hídrica não se aprofundará por causa da temporada de chuvas nas regiões Sudeste e Sul. A tese é a seguinte: até o dia da votação, em outubro de 2022, a pandemia e a crise econômica serão páginas viradas no imaginário do eleitorado. O presidente acredita nisso. Guedes também. “O Banco Central está aumentando os juros para fazer frente ao aumento da inflação. E esse aumento de juros vai prejudicar a atividade econômica no ano que vem, porque o juro mais alto encarece o crédito, e o crédito mais caro afeta o investimento e o consumo”, diz Felipe Salto, diretor executivo do Instituto Fiscal Independente.
Em seu duelo com o Congresso, Guedes alega que, se afrouxar o gasto público, inflação, dólar e juros subirão, e o desempenho econômico será prejudicado. O ministro insiste que a melhor saída é aprovar uma fonte de custeio para implantar imediatamente um Auxílio Brasil turbinado. Com o aval dele, está em tramitação no Congresso uma proposta de emenda constitucional que autoriza o governo a pagar apenas 40 bilhões de reais de uma dívida de 89 bilhões de reais em precatórios em 2022. A diferença seria usada para bancar o novo programa de transferência de renda, sem que houvesse qualquer prejuízo do teto de gastos. Desde que foi apresentada, a proposta enfrenta resistência. Há quem diga que é inconstitucional. Há quem diga que representa calote a credores. E há parlamentares que querem soluções mais fáceis, rápidas e nem sempre comprometidas com a saúde financeira do país. Para essa turma, Bolsonaro tem de tirar o controle da economia das mãos de Guedes, mesmo que ele continue como ministro. Até aqui, o presidente descarta essa possibilidade.
Nomeado com status de superministro, Guedes nunca teve uma relação boa com a classe política. Na sua estreia em negociações com o Congresso, recomendou uma “prensa” nos parlamentares para garantir a votação da reforma da Previdência. Colheu antipatia. No início da pandemia, ele propôs um auxílio emergencial de 200 reais, descartado pelos congressistas, que aprovaram o valor de 600 reais. Apesar de até agora não ter conseguido tirar do papel as reformas administrativa e tributária e algumas privatizações, Guedes viu projetos importantes caminharem no Legislativo. O crédito, porém, deve ser dado principalmente aos presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), que conversam com frequência com o ministro. Os dois conhecem como poucos os humores de suas respectivas Casas e sabem que, se a economia não deslanchar a ponto de melhorar a vida dos eleitores, o cerco se acentuará. Blindado por Bolsonaro, Guedes vai ficando cada vez mais sozinho em Brasília.
Publicado em VEJA de 20 de outubro de 2021, edição nº 2760