O isolamento social imposto pela pandemia reformulou de maneira radical o mercado de trabalho. Milhões de pessoas espalhadas pelo mundo se viram forçadas a adotar o modelo remoto, fazendo reuniões pela internet e interagindo com seus colegas pelo WhatsApp. Sem a necessidade de ir ao escritório, muitas delas transferiram a base profissional para casas de praia ou no interior, se afastando do ritmo caótico das metrópoles. As mais ousadas se jogaram em um estilo de vida ainda mais transformador. Com o avanço de tecnologias como videoconferências e sistemas de inteligência artificial, as amarras territoriais desapareceram, abrindo espaço para uma geração de nômades digitais. Não é exagero dizer que, em muitos casos, basta um notebook na mochila para dar expediente em qualquer canto do mundo — desde que, é claro, a internet funcione.
Os nômades digitais acabam de ganhar um integrante de peso: Brian Chesky, CEO do Airbnb, a plataforma que ajudou a sacudir o mercado de turismo ao oferecer a viajantes a possibilidade de alugar uma casa ou apartamento por poucos dias, em vez de reservar apenas um quarto de hotel. O empresário anunciou que não terá mais residência fixa. Ele pretende passar algumas semanas em cada destino, começando por Atlanta, na Geórgia, Estados Unidos, e se hospedar apenas em imóveis disponíveis no app. De tempos em tempos, retornará a São Francisco, na Califórnia, onde fica o escritório central.
Para justificar a decisão, Chesky compartilhou alguns números da plataforma registrados em 2021. Uma em cada cinco reservas no terceiro trimestre foi para estadias de pelo menos 28 dias. E metade delas foi feita por ao menos uma semana. Nos doze meses entre setembro de 2020 e setembro de 2021, mais de 100 000 hóspedes fizeram reservas de noventa dias ou mais. É uma grande mudança, já que antes a plataforma era conhecida pelas estadias curtas, de poucos dias. A empresa também abriu doze vagas para o programa Live Anywhere, em que os escolhidos passarão um ano viajando pelo mundo com o objetivo de melhorar a qualidade dos serviços oferecidos. Mais de 300 000 pessoas se inscreveram para a iniciativa.
Pode parecer só uma esperta jogada de marketing. O.k., talvez seja um pouco disso, mas outros exemplos mostram que, com certo grau de desprendimento, até mesmo quem não é o CEO de um app de alcance global e dono de fortuna estimada em 12 bilhões de dólares pode se dar ao luxo de viver assim. O especialista do Google Vinicius de Oliveira sempre gostou de viajar. Morou dois anos na Austrália, fez um mochilão pelo Sudeste Asiático e passou temporadas em diversas cidades do interior de São Paulo. Durante a pandemia, percebeu que poderia abrir mão também da residência fixa. “Trabalhar por doze meses para poder viajar nas férias é coisa do passado”, diz. Nos últimos dois anos, eles esteve em Belém, Maceió e Rio de Janeiro. Ficou algumas semanas em diversas cidades menores de São Paulo, e mesmo dentro da capital paulista explorou períodos em diferentes bairros. Agora, se prepara para passar duas semanas na Argentina. Na volta, vai a Belo Horizonte.
É um estilo de vida que exige desapego material. Vinicius viaja só com uma mochila, onde guarda mudas de roupas suficientes para uma semana. Em outra mala, menor, leva o computador. Ele conta que já sentiu falta de ter um espaço apropriado para trabalhar em lugares onde se hospedou. “Eu também adoro cozinhar, e nem todas as cozinhas são equipadas ou têm os temperos de que gosto”, diz. “Mas quando está em uma cidade diferente, com tanto para conhecer, você releva essas coisas.” Assim, o turismo se mescla à rotina. O almoço é uma oportunidade para conhecer restaurantes locais, e a preguiça na frente da TV nos fins de semana dá lugar a passeios.
A mudança vem sendo feita de maneira desigual, como costuma ser no Brasil. No fim do ano passado, pesquisadores do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) divulgaram um estudo que traça o perfil de quem adotou o home office entre maio e novembro de 2020, quando a pandemia estava descontrolada e a vacina ainda longe de se tornar realidade. O levantamento mostrou que a força de trabalho remoto era majoritariamente feminina (57,8%), de pessoas que se declararam brancas (65,3%), com nível superior completo (76%), na faixa de 30 a 39 anos (31,9%) e empregadas no setor privado (61,1%). Naquele período, 7,3 milhões de brasileiros trabalharam em home office, ou 9,2% da população ocupada. Desde então, o porcentual caiu, com empresas requisitando a volta de seus funcionários.
Alguns setores têm se mostrado mais abertos a adiar o retorno aos escritórios. É o caso dos gigantes de tecnologia, como Google e Apple, que decidiram manter seus colaboradores do mundo inteiro em teletrabalho. Em outros casos, com estruturas hierárquicas muito verticalizadas, adotar o nomadismo digital de forma definitiva é um sonho distante. “O home office é um modelo que veio para ficar, mas não quer dizer que ele, de imediato, vai atingir a maioria”, diz Fábio Mariano Borges, antropólogo, sociólogo e professor da ESPM. Ele traça um paralelo com a internet. “É uma tendência que, primeiro, demora um tempo para se estabelecer. E, depois, atinge maior abrangência.”
De fato, o nomadismo digital já se desenha como uma oportunidade real para uma parcela crescente da força de trabalho. É preciso, porém, ter algumas habilidades importantes, como a capacidade de adaptação e a responsabilidade de entregar as demandas sem a pressão do ambiente corporativo, além de certa autonomia financeira. “Ficou claro na pandemia que não importa o número de horas trabalhadas, mas o resultado final”, diz Borges. De certa forma, adotar um estilo de vida nômade está relacionado a ter poder sobre a própria agenda. Isso, sim, é algo realmente transformador.
Publicado em VEJA de 2 de fevereiro de 2022, edição nº 2774