Em março, um grupo do departamento de estudos bancários e financeiros da Universidade de Zurique apresentou um trabalho que sugeria a substituição de todos os impostos da Suíça por um microimposto, com alíquota de 0,1%. Estudos semelhantes estão sendo realizados em vários países onde a nova tecnologia bancária gera a possibilidade de adoção de bases tributárias que refletem à perfeição toda atividade econômica, formal ou informal. Esses países, segundo o Bank for International Settlements (BIS, uma espécie de Banco Central dos BCs), produzem volumes anuais de créditos bancários equivalentes a até 100 vezes o produto interno bruto (PIB) das nações, somadas.
O Brasil, com a maior base tributária do mundo, sobressai nesse grupo. Aqui, os créditos bancários anuais representam 180 vezes o PIB. O volume de transações bancárias no país é de 1,5 quatrilhão de reais, de acordo com dados de 2016 do BIS. Isso significa que um milésimo desse volume, recolhido num microimposto, seria suficiente para substituir todos os tributos meramente arrecadatórios nos três níveis da federação. Enquanto outro grupo de países precisaria de alíquota de até 1% para substituir esses impostos, o Brasil tem situação semelhante à da Suíça nesse quesito — uma alíquota de 0,1% seria suficiente. Esse microimposto teria uma base tributária vinte vezes maior que a da CPMF (o antigo imposto do cheque) e 500 vezes maior que a base do imposto sobre valor agregado (IVA). O país também conta com um dos sistemas bancários mais sofisticados do mundo, tendo desenvolvido tecnologia própria, num processo contínuo que consome bilhões de reais em investimentos em informática. Vem sendo assim desde que foi preciso adaptar-se à hiperinflação da década de 80. Em vez de se aproveitar dessas condições vantajosas, no entanto, o Brasil insiste em sofrer com os efeitos de um sistema tributário tão desvirtuado e antifuncional que, ano após ano, recebe do Banco Mundial a avaliação de pior do mundo.
O fato de nossas bases tributárias tradicionais estarem totalmente em frangalhos deveria estimular os protagonistas do debate sobre a reforma tributária a pensar fora da caixinha. Considere-se que os noventa vorazes tributos brasileiros são cobrados quando a riqueza é auferida (renda), usufruída (consumo) ou estocada (patrimônio). Ora, tais bases estão absurdamente sobrecarregadas, a ponto de nosso sistema tributário ter perdido qualquer função de progressividade ou relação com a essencialidade do que se tributa. A norma é extrair o que for possível de cada agente econômico até a sua exaustão.
O imposto de renda é um exemplo dessa saturação. Chega-se à crueldade — não há outra palavra — de tributar um assalariado que ganha dois salários mínimos. O consumo é a base adotada pela maioria das propostas que tramitam no Congresso. Parece que os tributaristas preferem ignorar que o imposto sobre circulação de mercadorias e serviços (ICMS) é, de longe, o imposto mais sonegado. A propósito, lembro-me do que dizia o saudoso Mario Henrique Simonsen: “Imposto justo é aquele que o Estado consegue cobrar”. Além disso, a tributação do consumo não tolerará mais a menor sobrecarga adicional, sob pena de haver uma epidemia de informalidade. É notório que, quando a carga fiscal é exagerada, muitos agentes econômicos, tendo a própria sobrevivência ameaçada, preferem correr o risco de simplesmente deixar de pagar impostos.
“O país insiste em sofrer com os efeitos de um sistema tributário desvirtuado e antifuncional”
A tributação do consumo é também a mais socialmente regressiva. Há uma correlação direta e evidente entre esse imposto e a desigualdade social. Não será preciso fazer muita conta para perceber a injustiça. Basta estimar quanto a tributação sobre um pacote de macarrão, por exemplo, representa para a renda de um executivo e para a de um operário. A verdade é que qualquer imposto sobre consumo pune a parcela da população cuja renda, oriunda do trabalho, é majoritariamente destinada às compras essenciais.
Por último, a terceira base, a tributação do patrimônio, que corresponde a modestos 2% do bolo tributário brasileiro, está também no limite da saturação. Aumente-se a alíquota e o capital migrará para um porto seguro fora do país.
A solução disruptiva é a tributação do fluxo. Para adotá-la, bastaria romper a espessa névoa de preconceitos que turva o debate. Quando os dogmas tributários foram forjados, a mercadoria era visível e o pagamento, invisível. Era mais fácil tributar os produtos do que os pagamentos. Em tempos remotos, quando alguém completava uma carga de milho e recebia três moedas de ouro, era muito mais fácil para o Fisco rastrear e tributar o milho do que as moedas, que poderiam ser escondidas e escapar do olhar do coletor de impostos.
Essa realidade se inverteu. Hoje, a mercadoria é invisível. Cadeias produtivas inteiras se desmaterializaram. Livros, revistas, softwares, música e filmes, por exemplo, perderam o suporte físico, mas o que se paga por eles é perfeitamente rastreável e, portanto, tributável.
Esse fato cria um novo paradigma. Não devemos tributar a riqueza quando ela é gerada, consumida ou estocada, usando bases tributárias do século passado. Isso não funciona mais, e a tendência inexorável é que piore, abrindo buracos cada vez maiores nas contas públicas. Devemos, isto sim, tributar a riqueza quando ela se move.
O Brasil tem tudo para inverter a equação: em vez de microbases gerando macroimpostos, é possível ter uma macrobase viabilizando um microimposto.
Essa é a real revolução tributária que o país precisa e é capaz de fazer. O microimposto, se implantado gradualmente, pode em dois anos nos tirar da posição humilhante de pior sistema tributário para a de melhor — e apontar um caminho para o mundo.
* Flávio Rocha é presidente do conselho das lojas Riachuelo e um dos fundadores do Instituto para o Desenvolvimento do Varejo (IDV)
Publicado em VEJA de 18 de setembro de 2019, edição nº 2652