Fragilizadas pela pandemia, empresas do país atraem os ‘fundos abutres’
Com o aumento da inadimplência e das recuperações judiciais, grupos se preparam para atacar os ativos de empresas brasileiras
Crises costumam deixar os mercados de fusões e aquisições em polvorosa. No Brasil, a Covid-19 produz um efeito potencializado, uma vez que o desempenho econômico tem sido sofrível desde 2014. Em meio a esse cenário adverso, um grupo bem específico de investidores saiu à caça de empresas agonizantes mas com condições de se recuperar. São os chamados fundos abutres, que compram participação em companhias ou ativos de dívidas a um valor irrisório, em troca de mantê-las de pé. A oferta é tão grande que até empresas desesperadas por liquidez têm buscado tais fundos. “Geralmente somos nós que vamos atrás de oportunidades de compra, mas nos últimos 100 dias o meu telefone não parou de tocar”, diz um funcionário da Canvas Capital, uma gestora especializada naquilo que costuma ser chamado de mercado de ativos estressados (ou distressed, em inglês).
A dinâmica desse tipo de investimento é regida por uma tese clássica desse setor, simbolizada pela letra “U”: em momentos de crise os preços dos ativos caem, tornando-se boas oportunidades de compra, e sobem no longo prazo, com a estabilização da economia. Esses fundos e investidores famintos se relacionam com bancos, governos, gestoras de crédito e principalmente com o sistema judiciário, por onde tramitam os processos de recuperações e falências. Em geral, buscam empresas que precisam de dinheiro rápido. Foi esse tipo de acesso que permitiu ao advogado Guilherme Ferreira se unir à plataforma digital Jive, uma investidora em empresas claudicantes. Ferreira trabalhava no Lehman Brothers, em Nova York, até que a crise do subprime de 2008 levou o banco à falência. Com os recursos que tinha, a Jive comprou uma carteira com créditos podres de empresas brasileiras por cerca de 3,2% de seu valor original. A partir de 2011, com a retomada da economia, recuperou o valor da carteira.
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Clique e AssineA compra de dívidas, chamada de securitização, é a principal forma de atuação desses fundos. E, para eles, 2020 é um ano de abundância. Segundo cálculos da Jive, o total de dívida corporativa que deixará de ser paga neste ano dobrou desde junho de 2019. Com a pandemia do coronavírus, os fundos abutres têm demonstrado peculiar apetite na aquisição de nacos (ou a totalidade, se convier) de empresas em setores competitivos, mas fortemente impactados pela crise, como rodovias, aéreas, sucroalcooleiras, educação e turismo. A Serasa Experian estima que será registrado um número recorde de pedidos de recuperação judicial em 2020, acima dos 1 863 casos em 2016, criando o banquete perfeito para esses fundos. E, com a queda abissal da Selic, reduzida para 2,25% ao ano na quarta-feira 17 pelo Comitê de Política Monetária, os abutres estão recebendo grandes fluxos de recursos de investidores que não querem mais a baixa rentabilidade do Tesouro. “Os fundos estão com seus caixas reforçados e prontos para as oportunidades”, diz Carlos Priolli, sócio do escritório Alvarez & Marsal.
Recentemente, o fundo Latache, comandado por Renato Azevedo, fez uma operação que chamou a atenção dos principais agentes desse mercado. A gestora comprou, em maio, uma participação indireta de 50% da Concessionária Rodovias do Tietê, de propriedade dos grupos Bertin, Atlantia e Lineas. De acordo com fontes ouvidas por VEJA, não houve custo de aquisição para a Latache, porque o fundo assumiu os passivos e as obrigações de investimento. Após a crise de 2014, muitos fundos compraram participações em empresas brasileiras quebradas, como é o caso do americano Lone Star e da gestora Castlelake, que concederam um empréstimo milionário em 2017 para a Atvos, braço de etanol da Odebrecht. Hoje há uma grande briga na Justiça para assumir o controle da empresa. Um executivo envolvido na transação explica que experiências como essa traumatizaram os fundos internacionais porque a Justiça brasileira é vista como lenta e muito favorável aos devedores. A avaliação é que, enquanto o processo se desenrola, a empresa comprada se desvalorizou nos últimos três anos. “Hoje a posição da Lone Star, que opera 90 bilhões de dólares no mundo, é resolver esse problema e provavelmente nunca mais olhar para o Brasil”, diz o executivo. Evidentemente, é um negócio que tem seus riscos. Apesar dos sobressaltos, corra e olhe o céu: os abutres já despontam acima da nossa cabeça.
Publicado em VEJA de 24 de junho de 2020, edição nº 2692