Governo Lula articula agenda de retrocessos para relações de trabalho
Contribuição sindical obrigatória e criação de vínculos trabalhistas entre empresas e profissionais autônomos estão entre as propostas
![OLHO NO RETROVISOR - Marinho, ministro do Trabalho: pautas ultrapassadas que não trariam benefícios ao país](https://gutenberg.veja.abril.com.br/wp-content/uploads/2023/08/20230213174613523_56.jpg.jpg?quality=90&strip=info&w=1280&h=720&crop=1)
O escorpião pede ao sapo que o ajude a cruzar o rio. O sapo resiste, pois teme ser picado. Para convencê-lo, o escorpião diz que não faria isso, sob o risco de ambos afundarem. O argumento é suficiente para o sapo, mas o escorpião, que não resiste à própria natureza, acaba por ferroá-lo — e ambos morrem. A antiga fábula indiana pode servir para entender coisas que ocorrem no Brasil. Desde o início do ano, integrantes do governo Lula têm defendido a revisão de pontos importantes da reforma trabalhista, como o fim do imposto sindical — defendem uma volta disfarçada com algo semelhante ao imposto. O assunto parecia superado, mas o PT, cuja raiz vem da atividade sindical, não consegue negar a própria natureza, tal qual o animal peçonhento dos indianos. A agenda do atraso não se encerra nessa questão. Temas afeitos ao século passado, como o estabelecimento de vínculos trabalhistas entre profissionais autônomos e empresas, também voltaram a ser cogitados em Brasília.
A primeira frente que o governo abriu para a volta do tema foi no Supremo Tribunal Federal, pelo voto do ministro Gilmar Mendes. Sensibilizado com o enfraquecimento do sindicalismo no Brasil (veja o quadro), Mendes alterou o entendimento anterior e, assim, formou maioria para o retorno da contribuição assistencial obrigatória, que havia sido eliminada no governo Michel Temer. Ao contrário do imposto sindical, ela é estabelecida em assembleia de cada categoria, e não há um valor fixo. A votação no STF será retomada no início de setembro.
![20230410161620858_50.jpg NO PASSADO - Lupi, da Previdência: ele é contrário à reforma trabalhista](https://gutenberg.veja.abril.com.br/wp-content/uploads/2023/08/20230410161620858_50.jpg.jpg?quality=90&strip=info&w=1024&crop=1)
A outra frente de recomposição da atividade sindical deve ser aberta no Congresso, apesar da dificuldade que a proposta encontrará por lá. Um projeto de lei em gestação no governo prevê um teto para a nova taxa de até 1% do rendimento anual do trabalhador, a ser descontada na folha de pagamento e cobrada quando há negociação salarial intermediada pelo sindicato. Como essas negociações ocorrem sempre, a justificativa do governo ao dizer que isso não significa a volta do imposto é apenas retórica. “É um baita retrocesso, ruim para a população e uma sinalização péssima para a economia”, diz o economista Alexandre Schwartsman.
As investidas do PT não surpreendem. Durante a campanha, o presidente Lula falou em buscar novas formas de financiar a atividade sindical. Em entrevista recente ao repórter Diego Gimenes, no programa VEJA Mercado, o ministro do Trabalho, Luiz Marinho, confirmou que a pasta planeja o retorno da contribuição e que ela “terá um teto”. Marinho não é o único em cruzada pela revisão da reforma trabalhista. O ministro da Previdência, Carlos Lupi, já a criticou publicamente ao dizer que prejudicou a vida do brasileiro. “Retroceder para reimplantar essa obrigatoriedade só interessa aos pelegos e aos sindicatos de fachada”, diz o senador Rogério Marinho (PL-RN), que foi relator da reforma na Câmara. Além da volta de uma espécie de fonte de custeio da atividade sindical, o governo também bate o pé pela manutenção da chamada “unicidade”, que proíbe a criação de mais de um sindicato representativo de uma categoria na mesma região. A proibição, que na prática veta qualquer tipo de concorrência, mesmo se esse for o desejo dos empregados, vai contra o que preconiza a Organização Internacional do Trabalho. “Rever isso seria importante, porque é um mecanismo atrasado que não representa o interesse do trabalhador”, reconhece Marinho.
A reforma trabalhista promulgada em 2017 foi bem-vinda por atualizar as relações entre empregados e empresas em um mundo marcado por novas — e incessantes — revoluções tecnológicas. Essas mudanças permitiram, por exemplo, a labuta diária realizada mesmo longe do escritório, o chamado home office. Também eliminaram barreiras de horários, entre outras “disrupções”, para usar uma palavra destes tempos. Países que modernizaram suas regras há mais tempo vêm colhendo resultados.
![GettyImages-1302302448.jpg PÉ NO FREIO - Pesquisa aponta que 75% dos trabalhadores rejeitam a CLT](https://gutenberg.veja.abril.com.br/wp-content/uploads/2023/08/GettyImages-1302302448.jpg.jpg?quality=90&strip=info&w=1024&crop=1)
No final dos anos 1990, a Alemanha vivia uma de suas piores crises econômicas. A resposta veio em 2002, com uma ampla reforma de sua economia, chamada de Plano Hartz, que incluiu mudanças nas regras trabalhistas, como a simplificação da contratação de trabalhadores temporários ou terceirizados, desde que assegurando a mesma remuneração e direitos. Hoje em dia, a Alemanha tem uma economia pulsante e uma das menores taxas de desemprego do mundo. No Brasil, a reforma provocou efeitos imediatos, como a redução de litígios entre empresas e trabalhadores — o número de processos caiu de 2,6 milhões em 2017 para 1,1 milhão no ano passado.
![4-LULA-SINDICALISTA-20140905-164616.jpg EM GREVE - Lula discursa para metalúrgicos da Volks em 1979: DNA sindical](https://gutenberg.veja.abril.com.br/wp-content/uploads/2023/08/4-LULA-SINDICALISTA-20140905-164616.jpg.jpg?quality=90&strip=info&w=1024&crop=1)
O ministro do Trabalho, Luiz Marinho, também defende o estabelecimento de vínculos trabalhistas para motoristas de aplicativos como Uber e 99 e entregadores de encomendas. Detalhe: nem sequer os profissionais que exercem essas atividades desejam ter o seu trabalho regido pela CLT (Consolidação das Leis do Trabalho). Em maio, uma pesquisa feita pelo Instituto Datafolha mostrou que 75% dos trabalhadores de aplicativos, inclusos aí motoristas de Uber e motoboys, preferem manter a autonomia. Na sociedade atual, manter o olhar no retrovisor pode frear o acompanhamento dos novos tempos. Sob diversos aspectos, a recriação de taxas sindicais e a imposição de vínculos trabalhistas são ideias deslocadas no tempo. O governo deveria entender que o mundo mudou e que trazer de volta regras do passado é um retrocesso capaz de prejudicar os próprios trabalhadores — e atrasar a economia do país.
Publicado em VEJA de 1º de setembro de 2023, edição nº 2857