Luiz Carlos Moraes: ‘O carro será um celular de rodas’
Presidente da Anfavea afirma que a conectividade mudará a indústria automobilística e critica quem fala que redução de IPI é benefício para as montadoras
Foi com o olhar voltado para o futuro da indústria automobilística e da mobilidade – cujo presente tem se afastado do passado em, digamos assim, alta velocidade – que o economista Luiz Carlos Moraes, 59 anos, assumiu em abril a presidência da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea). A missão que ele mesmo se impõe é esta: preparar o setor para a revolução da conectividade. Moraes prevê que daqui a poucos anos tudo o que diz respeito aos transportes será muito, muito diferente. Apesar de isso parecer distante da realidade brasileira, o país, segundo o economista, já começa a sentir os efeitos da nova era, que será marcada pelos veículos elétricos e autônomos.
As companhias, afirma Moraes, vêm se preparando para oferecer automóveis com serviços tecnológicos digitais – desde comando de voz e compartilhamento de rota até o controle a distância de vários mecanismos, visando ao conforto, entretenimento e segurança. “O carro vai ser um celular de rodas”, aposta ele. Na entrevista a seguir, Moraes, que também é diretor de comunicação corporativa e relações institucionais da Mercedes-Benz do Brasil, fala sobre o horizonte que se desenha para o setor, do esforço que o país precisa fazer para não ficar de fora dele e da controvérsia em torno dos incentivos governamentais para as montadoras. Acompanhe a seguir:
Como o senhor vê o futuro da mobilidade para daqui a dez, vinte anos? Está acontecendo uma grande transformação na indústria automobilística. Todo mundo está investindo em tecnologia. Está se discutindo carro autônomo e carro elétrico, e, ao mesmo tempo, trabalhando em conectividade, que terá um impacto muito grande. O carro vai ser um celular de rodas. No caso de transporte de mercadorias, por exemplo, muitos aplicativos já ajudam bastante – desde a redução do custo do frete até o aumento da segurança. Além disso, existem muitas startups que estão trazendo ideias para carros, ônibus e caminhões que não foram pensadas pela indústria automobilística.
Com o avanço da conectividade nos automóveis e o uso maior de informações, como o senhor avalia a questão da proteção de dados? Esse é um desafio que todos nós vamos enfrentar – não só a indústria automotiva, mas toda a economia. O carro e o caminhão geram dados de desempenho do veículo (para manutenção preventiva, manutenção corretiva) e também do motorista (se dirige bem ou não). No caso dos frotistas, existem sistemas por meio dos quais é possível monitorar o comportamento de cada condutor, sob vários aspectos, o que poderá ser usado até para treinar o profissional e melhorar o desempenho dele. A proteção de dados será uma nova dimensão que teremos de trabalhar, e que envolve até o desempenho de logística de telecomunicações. Antigamente, fazíamos o veículo, e ele era a solução. No futuro, não vai adiantar apenas construir um carro supermoderno. Serão necessários outros elementos, como o investimento em tecnologia 5G. Além disso, quando se faz um veículo semiautônomo, que lê faixas, é preciso, claro, que haja a faixa! Conclusão: esse novo mundo vai gerar investimentos em outras áreas. A indústria automobilística tradicional que conhecemos hoje vai ser muito diferente daqui a dez, vinte anos.
Os veículos autônomos, elétricos e híbridos já estão avançando em diversos países. Quando eles serão uma realidade para o mercado brasileiro? Alguns semiautônomos já estão sendo vendidos no Brasil, para alguns clientes de montadoras do segmento premium. No setor agrícola, os autônomos já são uma realidade, com tratores e caminhões. E é no agronegócio que eles chegarão mais rápido, porque o ambiente permite circulação mais controlada, com maior segurança – a tecnologia ainda está em desenvolvimento, e, por isso, merece cuidados. Em relação à eletrificação e ao carro híbrido, tem muita coisa acontecendo no país. O custo, porém, ainda é alto, não só aqui como no exterior. O barateamento – como a redução do custo da bateria, que é um elemento importante – só vai acontecer quando tiver volume. E é preciso ter infraestrutura: não adianta trazer o veículo elétrico, se não houver postos de recarga.
Em que frente os elétricos terão melhor desempenho? Eles serão mais eficazes para pessoas que costumam percorrer poucas distâncias. Em países que têm um comportamento de consumidor que gosta de fazer longas viagens, é mais provável a utilização do veículo híbrido do que o elétrico – por causa das bases de abastecimento. Já aqueles que costumam fazer viagens mais curtas, dentro da cidade, tendem a optar pelo elétrico. Agora, insisto: o custo ainda precisa ser barateado; o investimento é muito alto.
“O modelo de negócios será diferente. Em cinco, dez anos, ele vai se basear no que estará ao redor do veículo. O setor terá de investir em áreas com as quais não estava habituado”
Há uma tendência de redução no número de carros nas famílias. Os jovens já não mostram tanto interesse em ter carteira de habilitação. Qual é a sua avaliação sobre o futuro do consumo de veículos? A indústria automobilística vai passar pela maior transformação da sua história dos últimos 100 anos. O modelo de negócios será completamente diferente do atual, que é linear, com fornecedor, montadora e concessionária. Em cinco, dez anos, as atenções vão se voltar para o que estará ao redor do veículo – mobilidade, aluguel, car sharing. A indústria mundial terá de investir em outras áreas, com as quais não estava habituada, como conectividade e infraestrutura. Algumas empresas já estão fazendo, por exemplo, parcerias para ter postos de recarga de carros elétricos a fim de atender esse novo consumidor. Isso traz um desafio, mas também oportunidades – de realizar parcerias com companhias de outros segmentos, como o de energia e o de mobilidade. Teremos uma transformação porque o consumidor está mudando, a sociedade está mudando e o modelo de negócio vai mudar.
A demanda menor preocupa o setor? Não, porque vamos vender de forma diferente. Se o consumidor reduzir o consumo, vamos comercializar para grandes frotistas, que, por sua vez, oferecerão os carros para as pessoas, seja no aluguel, seja no serviço de transporte por aplicativo. Sim, o modelo de negócio vai mudar, porém a necessidade de mobilidade, não.
As exportações brasileiras de carro despencaram neste ano devido à crise na Argentina. Qual a importância do país vizinho para nós e como ampliar as vendas para outras nações? Antes da crise, a participação da Argentina era de 70% na nossa exportação. Diante da atual situação do país – inflação elevada, congelamento de preços e momento político pré-eleitoral –, não esperamos recuperação de cenário. As exportações brasileiras acumulam queda de 42% neste ano. A indústria também exporta para Chile, Peru, Equador e Colômbia, no entanto o peso da Argentina é grande. As montadoras estão tendo de ajustar o seu volume de produção e tentam compensar parte dessa retração com vendas para outros países, como os da África, do Oriente Médio e da Ásia. Contudo, não conseguimos avançar por causa da competitividade.
A competitividade, aliás, é o principal problema hoje da indústria automobilística nacional? Um grande desafio da nossa gestão é trazer a competitividade para o setor. E esse não é só um problema da indústria automobilística, mas também da economia brasileira. A Anfavea fez um estudo com a PwC em que foram analisadas cinco montadoras que produzem veículos iguais ou similares, tanto no México como no Brasil, e comparamos os dados. A conclusão foi de que o custo de produção no México, para as mesmas montadoras e veículos similares, é 18% mais baixo do que no Brasil. A diferença é vista nos custos do material, da mão de obra e da logística. São várias as ineficiências que o Brasil tem em relação ao México. O levantamento também mostra que os primeiros produtos da pauta de exportação daquele país são automóveis, caminhões e autopeças. Já a pauta de vendas externas brasileira é liderada pelas commodities. Os mexicanos têm conceito e sistema de produção voltados para produtos de maior volume agregado, além de terem um parceiro de importância, que são os Estados Unidos.
“A primeira coisa a fazer é reduzir o custo. Depois, simplificar a carga tributária e em terceiro lugar precisaremos produzir mais. Isso é essencial para baratear o preço dos automóveis”
Como aumentar a competitividade brasileira? É preciso reduzir o custo-Brasil. Além da reforma da Previdência, precisamos da reforma tributária, microrreformas, simplificação e redução da burocracia para ajudar a indústria a ser competitiva. Um exemplo é o sistema tributário. Além de a carga ser alta, gasta-se muito dinheiro para acompanhar e calcular impostos. Um estudo da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) mostra que uma empresa gasta 1,2% de sua receita para cumprir obrigações acessórias. Ela precisa gastar em sistemas e em times de área contábil e fiscal. Além disso, têm-se interpretações diferentes: a companhia interpreta de um jeito e a área fiscal, de outro. O sistema tributário destrói empregos. Ou acabamos com esse sistema ou ele acaba com a indústria. Gostaríamos de estar gastando esse dinheiro em pesquisa e desenvolvimento de tecnologias que fazem parte do desafio da indústria no futuro. Perde-se muito tempo para desembaraçar uma mercadoria no porto. É muita burocracia, muito carimbo. Para importar airbag, por exemplo, que é um item mandatório no veículo, é preciso ter uma autorização do Exército brasileiro. A logística também é muito cara. E ainda há os elevados encargos sociais.
O preço do carro é considerado alto no Brasil. Como barateá-lo? A primeira coisa a fazer é reduzir o custo, comparando a países que têm características similares à nossa. Depois, é preciso simplificar a carga tributária, que varia de 37% a 44%, dependendo da cilindrada do automóvel. Em terceiro lugar, precisamos produzir mais. O Brasil precisa crescer para ter volume, o que é essencial para baratear o custo de produção.
A indústria automobilística é criticada porque recebe ajuda e incentivos de governos. Qual a avaliação do senhor? Vamos separar o que é incentivo do que é reparação de um custo de processo produtivo. Um exemplo é o Reintegra (Regime Especial de Reintegração de Valores Tributários para as Empresas Exportadoras). Pelo sistema brasileiro, quando há exportação, não existe a possibilidade de usar todos os créditos tributários presentes na cadeia produtiva, e isso acaba embutido no custo. O Reintegra é o reembolso de parte dessa ineficiência tributária que o setor carrega na exportação. Isso não é incentivo, isso é uma reparação de um absurdo do sistema tributário. Outro ponto é que, quando se reduz o IPI (Imposto sobre Produto Industrializado), quem está se beneficiando não é a montadora, e sim o consumidor final. A indústria automobilística, nesse caso, acaba recebendo um benefício indireto, porque tem mais chance de aumentar seu volume. Entretanto, a redução da carga tributária não pode ser tratada como incentivo. O que a indústria busca é uma restituição de uma ineficiência do sistema tributário brasileiro.