Na contramão do mundo, Brasil vê desânimo generalizado com a economia
Desempenho do real e da bolsa é só o retrato mais visível dos problemas – e declarações de Lula contribuem para esse cenário incerto
Nas últimas semanas, uma série de indicadores econômicos tem demonstrado que, enquanto boa parte dos países ricos e dos emergentes começa a deixar a crise para trás, o Brasil teima em ir na direção oposta. A cotação do dólar, que há alguns dias alcançou a marca dos 5,50 reais pela primeira vez desde janeiro de 2022, é o retrato mais visível — mas não o único — dos problemas que pairam sobre o país. Em junho, o valor da moeda americana subiu 5% em relação ao real. No ano, acumula alta de 14%. Os exemplos ruins se espalham por diversos segmentos. O Ibovespa, a principal referência da bolsa brasileira, está entre os indicadores acionários de pior desempenho no mundo neste ano, os juros futuros voltaram a subir e o chamado risco-país, medido pelo CDS (credit default swap, em inglês), um contrato negociado no mercado financeiro que sobe conforme prolifera a desconfiança dos investidores em relação ao país, já inflou 20% desde janeiro. “O projeto do governo de aumentar impostos para ampliar gastos chegou ao limite e, se não mudar, teremos uma economia com juros altos, câmbio desvalorizado e preço das ações muito baixo”, diz José Márcio Camargo, economista-chefe da corretora Genial Investimentos.
É verdade que alguns países ainda lidam com os rastros de inflação deixados pela pandemia, mas eles, de fato, estão virando o jogo. Nos Estados Unidos, é crescente a expectativa de que o ciclo de corte de juros comece ainda em 2024, enquanto o Banco Central Europeu iniciou a redução de taxas há três semanas. O BC da Suíça acaba de fazer seu segundo corte de juro. Por aqui, com a inflação dando sinais de retomada, é possível que o BC volte à agenda de aperto monetário nos próximos meses. Isso naturalmente drena recursos da renda variável para a fixa e estimula a saída de capital de um país emergente, e mais arriscado, como é o Brasil. O Ibovespa já caiu 18% em 2024, considerada a sua cotação em dólar. E isso em um momento em que o mercado de ações dos Estados Unidos, a despeito de juros locais também altos, vem de uma sucessão de recordes. Turbinada pelo fenômeno da Nvidia, fabricante de chips para inteligência artificial, e de outras empresas do setor, a Nasdaq, bolsa de tecnologia dos Estados Unidos, sobe 16% em 2024, enquanto o S&P 500, referência da Bolsa de Nova York, avança 14%. “Podem querer colocar a culpa no Fed (o banco central americano), mas, se só isso explicasse o desempenho do Ibovespa, as bolsas americanas não estariam no pico”, diz Wilson Barcellos, presidente da gestora de patrimônio Azimut Brasil. “As razões estão aqui dentro e grande parte da culpa é nossa.”
As novas declarações de Lula em defesa do aumento de gastos, quando o próprio governo já não consegue mais fontes de receita para pagar tudo o que promete, são só a mais recente peça de um mosaico montado há meses e que produziu desgastes com investidores e o Congresso. O resultado é a generalização do desânimo com os rumos da economia. Até o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, que desfrutava de boa reputação no mercado financeiro, agora começa a ter seu trabalho questionado. No começo do ano, as expectativas de uma taxa básica de juro abaixo de 10% davam o tom do otimismo com a bolsa e o controle da inflação saltava aos olhos. Mas o cenário mudou por completo. A crença de que a inflação seguirá baixa e cumprirá a meta de 3% ao ano é cada vez menor — o IPCA, indicador oficial de preços, está rondando a casa dos 4%, e não há projeção de que cairá abaixo disso neste ou no próximo ano. Na quinta, o BC fez uma projeção de que ela será de 4%. “A dificuldade agora é consolidar na cabeça dos agentes econômicos que o Brasil vai ter inflação de 3%, porque ninguém acredita”, diz Tomás Goulart, economista-chefe da gestora Novus. “Nesse caso, o BC acaba obrigado a manter a taxa de juros mais elevada por mais tempo.”
Em sua última decisão, citando justamente a piora das expectativas, as preocupações fiscais e os juros ainda altos no exterior, o Banco Central interrompeu o ciclo de sete cortes consecutivos da Selic, mantendo a taxa de referência em 10,5% e acabando com qualquer esperança de que o Brasil pudesse voltar a ver juros de apenas um dígito tão cedo. “A grande diferença entre os Estados Unidos e o Brasil é que lá, a despeito de uma inflação forte no começo do ano, as projeções permanecem em torno da meta, o que significa que as pessoas acreditam que o Fed fará o que tem que ser feito”, afirma Felipe Sichel, economista-chefe da gestora Porto Asset. A credibilidade ajuda a manter a expectativa de pelo menos dois cortes de juros pelo Federal Reserve até o fim do ano, algo que, ressalve-se mais uma vez, não deverá ocorrer no Brasil.
No front fiscal, a ruptura da confiança teve início com a revisão das metas de superávit primário do governo, que jogou para 2026, último ano da gestão Lula, o compromisso de colocar as contas públicas no azul. O afrouxamento da exigência apenas ampliou o ceticismo de que isso tenha alguma chance de ocorrer no atual mandato. Outro aspecto fundamental que coloca pontos de interrogação quanto à condução da política monetária é a troca de comando no Banco Central. Este ano será o último da presidência de Roberto Campos Neto, e a escolha de Lula para seu sucessor deverá mostrar se o governo está, de fato, comprometido com a continuidade do trabalho feito pela autoridade monetária no controle da inflação.
O cenário incerto se completa com o renovado bombardeio do presidente da República sobre Roberto Campos Neto e também após Gabriel Galípolo, diretor de política monetária do Banco Central e nome ventilado como preferido por Lula para a sucessão, ter votado em consonância com os demais membros do BC pela manutenção da Selic em 10,5%. “A desancoragem que estamos vendo não tem a ver com a inflação”, afirma Alexandre de Ázara, economista-chefe do banco UBS BB. “As pessoas desconfiam de dois aspectos: o regime fiscal daqui para frente e a postura do futuro presidente do BC e dos diretores que ficarão sob sua liderança.”
A condução da economia depende, em grande medida, do manejo das expectativas, seja de investidores, empresários, trabalhadores, seja de consumidores. Se eles não acreditam que o cenário econômico do país vai melhorar, acabam se retraindo nas decisões de investimentos e consumo — e, o que já era ruim, piora. Lula, um presidente veterano, deveria saber disso. O problema é que ele parece ter esquecido ou resolvido ignorar as evidências. E o preço dessas atitudes já está sendo cobrado.
Publicado em VEJA de 28 de junho de 2024, edição nº 2899