O apagão já começou: cortes expõem o risco real de colapso da máquina estatal brasileira
Com o orçamento sufocado por despesas obrigatórias, diversos órgãos federais já suspendem programas

A maioria dos economistas afirma que 2027 será um ano decisivo para o Brasil. O aumento das despesas obrigatórias com saúde, educação e previdência social, entre outras, ocupará todo o Orçamento da União e não restará dinheiro para manter muitos serviços públicos em pleno funcionamento. Assim, em menos de dois anos, a máquina federal pode literalmente parar. O apagão, porém, não virá como uma interrupção abrupta das atividades e, sim, como uma gradual desativação dos serviços prestados à população — um processo que já começou, a julgar pelos relatos de órgãos federais que, desde o fim de maio, reduziram o expediente, cortaram funcionários, suspenderam programas e adiaram investimentos. O estopim foi a decisão do governo de congelar 31 bilhões de reais em gastos para cumprir a meta fiscal. Mesmo o desbloqueio de quase 21 bilhões em julho, conduzido pela equipe econômica do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, com o apoio da ministra do Planejamento, Simone Tebet, não representou uma grande melhora para a maioria dos afetados. “Seguimos com a água batendo no nariz”, diz Vinicius Benevides, presidente da Abar, entidade que reúne mais de setenta agências reguladoras, incluindo as onze da União. “Respiramos com dificuldade.”

As agências reguladoras estão entre as áreas mais afetadas pela falta de verbas. Em maio, cada uma teve 25% do orçamento suspenso, obrigando seus dirigentes a adotar cortes emergenciais de gastos. Uma das primeiras a vir a público para relatar as dificuldades foi a Agência Nacional de Petróleo, Gás e Biocombustíveis (ANP), responsável por fiscalizar um setor que representa 11% do produto interno bruto. Além de dispensar 41 funcionários terceirizados, a ANP determinou que os servidores trabalhem em casa três dias por semana para reduzir os custos de manutenção do escritório do Rio de Janeiro. Em Brasília, a ordem é fazer meio expediente presencial. A medida mais grave foi a suspensão do monitoramento da qualidade dos combustíveis, cujo objetivo é combater a venda de produtos adulterados. A reação negativa sobre os danos à população causados pela falta de fiscalização levou o governo a encontrar uma solução intermediária: autorizar a antecipação de desembolsos previstos para os próximos meses. Assim, a agência retomou a supervisão dos postos, mas o problema foi só empurrado para a frente. “Se o nosso orçamento não for recomposto, teremos de tomar mais decisões difíceis”, diz Bruno Caselli, diretor-geral da ANP.
O uso de outro recurso essencial — a água — também vive um apagão de vigilância devido ao bloqueio de verbas da ANA, a agência responsável pela área. Diariamente, o órgão coleta dados de 23 000 equipamentos instalados nos rios do país, como a vazão e o volume. As informações orientam desde o projeto de pontes até a operação das hidrelétricas. Sem dinheiro para a manutenção, 30% dos aparelhos serão desativados. Na Anatel, o sufoco financeiro emperra a modernização do datacenter, um projeto de 70 milhões de reais vital para supervisionar o setor de telecomunicações. O órgão também sofre para atender às reclamações que mais de 1 milhão de clientes das operadoras apresentam por ano e adiou a compra de drones que seriam usados para fiscalizar as frequências, com o objetivo de impedir que uma empresa interfira na faixa de transmissão de outra.
Os prejuízos à sociedade decorrentes dos cortes de verbas não são o único argumento dos dirigentes desses órgãos para tentar convencer a equipe econômica a abrir os cofres. “Todas as agências dão muito retorno financeiro ao Tesouro”, afirma Cristiana Camarate, membro do conselho diretor da Anatel. Em 2024, a União angariou 95 bilhões de reais em receitas geradas pelas onze agências federais com a aplicação de multas, coleta de royalties e leilões de concessões, entre outras fontes. “Não faz sentido econômico reduzir as atividades de regulação, já que elas contribuem para o caixa do governo”, diz Veronica Sánchez, diretora-geral da ANA.

Outras engrenagens da máquina pública também são corroídas pela falta de dinheiro. A Força Aérea Brasileira manterá no chão parte de sua frota e afastará mais de 100 pilotos. Além disso, restringiu o uso de aeronaves para o transporte de autoridades. No Itamaraty, diplomatas e funcionários de carreira estão pagando do próprio bolso as despesas com passagens e hospedagem em missões oficiais. Os reembolsos demoram, em média, 45 dias. Outra queixa é a demora em repatriar os servidores que desejam retornar ao Brasil após atuar em outros países. Sem verbas para bancar a mudança e as passagens, pelo menos 500 funcionários e seus familiares aguardam a remoção, enquanto faltam braços em Brasília. “Temos um déficit enorme de gente”, diz Gabriela Perfeito, presidente do sindicato que representa os diplomatas e servidores.
Os fatores que estrangulam o caixa da União são bem conhecidos. Ao permitir que as despesas obrigatórias cresçam mais que os 2,5% ao ano estabelecidos para o conjunto do Orçamento, o arcabouço fiscal tira o espaço dos gastos discricionários que abrangem o custeio da máquina. A solução para que ela possa operar de modo satisfatório e entregar bons serviços, contudo, não está na leniência com o aumento do déficit fiscal nem em alimentar a voracidade arrecadatória do governo Lula. O primeiro passo seria promover uma reforma administrativa que modernize a gestão pública, tornando-a mais eficiente. O segundo é encarar os pontos que engessam o Orçamento, como os gastos mínimos previstos na Constituição com saúde e educação e o reajuste de aposentadorias e benefícios pelo salário mínimo.

A pouco mais de um ano das eleições presidenciais e com uma base parlamentar em deterioração, são remotas as chances de Lula bancar medidas efetivas de ajuste nas contas. Assim, as engrenagens da União correm o risco de travar já no ano que vem. Segundo estudo publicado em junho pela consultoria BRCG, especializada em macroeconomia, o governo terá a seu dispor apenas 33 bilhões de reais para custear seu funcionamento em 2026. “A máquina começará o ano com o tanque de combustível na reserva”, diz Matheus Ribeiro, economista da BRCG. “Qualquer imprevisto e ela parará no meio do caminho.” A situação é mais um grande alerta para a urgência de equacionamento da bomba fiscal. Não há como o país postergar mais o enfrentamento desse grave problema.
Publicado em VEJA de 8 de agosto de 2025, edição nº 2956