Ícone do capitalismo do século XX, a montadora americana Ford foi pioneira dos carros para consumo de massa, com o lançamento, em 1908, do Ford T. Cinco anos mais tarde, desenvolveu a linha de montagem, invenção que mudou o mundo. A novidade surgiu depois que seu fundador, Henry Ford, visitou frigoríficos e fábricas de máquinas de costura e resolveu adotar o principio da produção em série, o que permitiu baixar pela metade o preço do modelo T ao mesmo tempo que dobrou o salário médio por funcionário. Um operário passou a realizar sozinho o trabalho de quatro e, depois de diversos ajustes, o modelo T, que era produzido em doze horas, passou a ficar pronto em apenas 24 segundos. Quando aportou no Brasil, em 1919, a montadora trouxe esse espírito de inovações. Foi a primeira fábrica a produzir carros locais. Estimulou a criação da Fordlândia no Vale do Rio Tapajós, no Pará, uma verdadeira cidade num terreno de 1,05 milhão de hectares e com cerca de 5 000 trabalhadores (o ambicioso plano não deu certo). Foi a primeira a montar modelos de luxo, com o Galaxie 500. Fez o primeiro carro movido a álcool — o Corcel II. Trouxe a tendência de SUVs para o uso diário com o EcoSport. Foi também a primeira a descentralizar a produção da região de São Paulo, ao inaugurar uma fábrica em Camaçari, na Bahia, em 2001. Na última semana, ela cravou mais um feito inédito: tornou-se também a primeira das grandes montadoras a deixar de produzir veículos no Brasil. Suas três fábricas que produziram pouco mais de 100 000 automóveis em 2020 serão fechadas e 5 000 pessoas, demitidas.
É fato que a Ford brasileira já vinha perdendo potência nos últimos anos, período em que deixou escapar, por exemplo, a quarta posição do mercado para a sul-coreana Hyundai. Ainda assim, o anúncio do encerramento da produção local foi um baque. Para o brasileiro, fã ou não de automóveis, era impensável que colossos como GM, Volkswagen, Fiat e Ford deixassem de fabricar seus carros aqui. Agora, essa certeza virou pó. De imediato, a saída da Ford dirigiu os holofotes para o peculiar ambiente de negócios brasileiro, que combina um emaranhado tributário com burocracia, constantes mudanças de regras, infraestrutura deficitária, câmbio instável e dificuldade no trato com os sindicatos de trabalhadores. “Temos sérios problemas no mercado brasileiro, ligados principalmente à falta de eficiência fiscal e instabilidade econômica, política e jurídica”, avalia o diretor da consultoria Jato Dynamics, Milad Kalume Neto.
As mazelas econômicas têm peso na decisão, mas a empresa também enfrentava dificuldades severas — aqui e lá fora. Na América do Sul, a Ford amarga prejuízos consecutivos há oito anos — muito por causa do mercado nacional —, somando um total de 5,7 bilhões de dólares. Desde 2015 a operação brasileira não anuncia nenhum novo investimento. Como resultado, a linha de produtos ficou defasada em relação à concorrência. A icônica fábrica de São Bernardo do Campo foi desativada em 2019. Na matriz, localizada na cidade de Dearborn, próximo a Detroit, no estado do Michigan, a situação também está complicada. A Ford tem acompanhado com sofreguidão as drásticas mudanças que atingiram a indústria automobilística. Entre as montadoras tradicionais, foi a que mais demorou a reagir ao impacto que a ascensão da Tesla e seus carros elétricos representou para o setor. Também foi lerda para identificar a revolução dos veículos autônomos atualmente em curso, gestada em empresas de tecnologia como Google e Uber. Ao mesmo tempo, a companhia ainda se ressente do baque provocado pela crise financeira de 2008, no qual já havia entrado em situação precária. Desde então, desfez-se de marcas importantes de seu portfólio, como as britânicas Jaguar, Aston Martin e Land Rover, vendidas ao grupo indiano Tata Motors, e a sueca Volvo, comprada pela chinesa Geely. Em paralelo, adotou uma estratégia radical centrada na produção de veículos utilitários de grande porte, que acabou por se tornar justamente o pretexto para deixar de produzir carros no Brasil. “A Ford optou por abandonar a área de veículos leves e começou a focar em picapes. A decisão de encerrar as operações fabris aqui no Brasil foi sendo amadurecida ao longo dos anos”, diz Flávio Padovan, ex-diretor-geral de operações de veículos comerciais da empresa para a América do Sul.
Fechadas as fábricas, a montadora passa a abastecer o Brasil com modelos trazidos do México, da Argentina e dos Estados Unidos, de onde deve vir seu mais recente lançamento, a versão modernizada do clássico Ford Bronco. A sede sul-americana continuará tendo sua base no Brasil, assim como o centro de desenvolvimento de produtos na Bahia e a pista de testes no interior de São Paulo. Tais concessões, entretanto, tiveram pouco efeito na turbulência provocada pelo anúncio do fechamento das fábricas. Irritado com as críticas a seu governo, o presidente Jair Bolsonaro não se furtou a atacar a empresa a partir do cercadinho no Palácio da Alvorada: “O que a Ford quer? Faltou dizer a verdade. Querem subsídios”. Para o economista José Roberto Mendonça de Barros, da MB Associados, o problema não está tanto na concessão de benefícios fiscais, mas na falta de perspectivas de crescimento econômico. A decisão da Ford, nesse caso, seria um reflexo das preocupações das empresas estrangeiras em geral — e nas multinacionais encrencadas em particular. “O Brasil ainda tem de retomar o crescimento de uma forma sustentável. E isso não está no horizonte. As projeções de crescimento são muito modestas, com pressão inflacionária cada vez maior”, explica. Com as perdas se acumulando e a impossibilidade de contar com o apoio da matriz, a Ford optou por sair do jogo. Quando anunciou a decisão, suas ações subiram 3,33% na Bolsa de Nova York, em um dia em que o mercado caía. Para o Brasil, não foi um bom sinal.
Publicado em VEJA de 20 de janeiro de 2021, edição nº 2721