Os programas de milhagens, criados pela companhia aérea americana American Airlines em 1981, provocaram verdadeira revolução no setor. Ao viajar, os passageiros acumulam milhas que, a partir de determinada quantidade, podem ser trocadas por descontos ou pela aquisição integral de novos bilhetes. O modelo espalhou-se pelo mundo e faz enorme sucesso também no Brasil. Além de permitir que as pessoas voassem mais, assegurou fontes adicionais de receitas para as empresas. Pouco depois, o sistema aprimorou-se a tal ponto que passou a ser possível obter milhas convertendo compras de qualquer produto feitas com cartões de crédito. Há uma década, contudo, surgiu uma espécie de mercado paralelo que começou a seduzir viajantes com uma proposta irresistível. Agências começaram a comprar milhas diretamente dos clientes para as revender depois por preços muito baixos. Se o turista fechar negócio com grande antecedência, é possível encontrar passagens de ida e volta para a Europa por volta de 1 000 reais. Para os Estados Unidos, existem opções ainda mais em conta, por 800 reais. O problema é que, na lógica econômica, milagres como esses quase sempre não se sustentam por muito tempo.
Na sexta-feira 18, a agência de turismo on-line 123milhas, líder entre as empresas que adotaram esse modelo de negócios, suspendeu a emissão de bilhetes de um de seus produtos, conhecido como “passagens promo”. O motivo alegado foi a alta demanda de consumidores que tinham comprado suas passagens havia um bom tempo e gostariam de resgatá-las agora. Procurada pela reportagem, a empresa atribuiu a medida a “razões mercadológicas”. Ela também defendeu-se ao dizer que ofereceu o reembolso em vouchers de outros produtos — como passagens com data marcada — disponíveis em seu site. Como não poderia deixar de ser, a medida revoltou consumidores, que viram o sonho de viajar cair por terra pela decisão unilateral da companhia. Não há número oficial, mas é certo que milhares de pessoas foram atingidas.
Afinal, o que significam as tais “razões mercadológicas” mencionadas pela 123milhas? Muitos analistas dizem que o problema está justamente em seu modelo de negócio, que se assemelha às malfadadas pirâmides financeiras. Nos pacotes flexíveis, é a agência que determina o dia do embarque em função de uma janela de opções dada pelo cliente. O problema é quando muitos deles escolhem a mesma janela, obrigando a empresa a vasculhar o mercado em busca de voos disponíveis. Se a demanda for muito alta, como ocorreu nas últimas semanas, há o risco de a agência não conseguir atender aos pedidos. Foi isso o que fez a 123milhas suspender parte das operações. “A forma de negociação dessas empresas de milhagens nunca ficou muito clara”, diz o advogado José A. Lion, especializado em direito do consumidor. “O governo precisa criar regras mais rígidas para evitar novos casos desse tipo.”
A compra e venda de milhas não é ilegal, mas sua prática não é regulada no Brasil. O limbo judicial tem feito com que as companhias aéreas e seus braços de fidelidade recorram a tribunais contra as empresas milheiras. De dezesseis casos desse tipo julgados em 2022 pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, quinze tiveram decisões favoráveis às companhias aéreas. Na terça-feira 22, o ministro do Turismo, Celso Sabino, disse não ver risco de crise sistêmica no setor e garantiu que o governo estuda medidas para dar segurança ao negócio.
Não é de hoje que esse modelo de pacotes de viagem sem data marcada traz problemas aos consumidores. Em maio, o Hurb, antigo Hotel Urbano, foi proibida pela Secretaria Nacional do Consumidor de vender os tais pacotes flexíveis, embora continue oferecendo essa possibilidade em seu site de vendas. Pouco antes, o presidente João Ricardo Mendes renunciou ao cargo após ser flagrado xingando clientes em uma gravação telefônica e vazar dados de alguns deles — posteriormente, voltou à posição após seu sucessor pedir demissão. Casos como esses deixam uma lição: nenhuma empresa, de qualquer setor, pode exercer sua atividade sem se sujeitar a normas claras de conduta. Na ausência de um poder fiscalizador, cabe ao consumidor desconfiar dos milagres para não acabar ficando com o prejuízo.
Publicado em VEJA de 25 de agosto de 2023, edição nº 2856