O órgão que se tornou grande símbolo da voracidade tributária do Estado
No Carf, vinculado ao Ministério da Economia, processos que somam 1 trilhão de reais se acumulam para garantir a arrecadação futura
“O Estado nunca é tão eficiente como quando quer dinheiro.” A frase do célebre escritor inglês Anthony Burgess (1917-1993), autor de Laranja Mecânica, dizia respeito à famosa burocracia britânica. Mas até mesmo o irônico Burgess se admiraria se acompanhasse a gestão fiscal e tributária do Brasil. Por aqui, é possível que até mesmo quando os impostos não estão sendo cobrados isso aconteça em razão da sanha arrecadatória da máquina pública, como prova a bizarra situação vivida hoje dentro do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf).
Vinculado ao Ministério da Economia, o Carf é um órgão no qual o contribuinte pode questionar suas pendências antes de entrar na Justiça. No entanto, nos últimos meses a instituição encontra-se praticamente parada sem julgar nenhum processo. Com isso, acumulam-se pendências que somam mais de 1 trilhão de reais em cobranças esperando decisões. Trata-se de casos que vão de disputas avaliadas em mais de 50 bilhões de reais envolvendo gigantes como Itaú e Ambev a processos avaliados em menos de 70 000 reais — cerca de 35 000 deles situam-se nessa faixa. Paradoxalmente, a paralisação significa maiores chances de a Receita obter sucesso nos julgamentos quando eles vierem a acontecer.
Dentro do órgão, todas as atenções se voltam para uma sessão marcada para março no Supremo Tribunal Federal. É quando a Corte decidirá pela constitucionalidade do fim do voto de qualidade no Carf, determinado por meio de medida provisória baixada pelo presidente Jair Bolsonaro e chancelada pelo Congresso Nacional em 2020. O voto de qualidade é nada mais nada menos que um voto de minerva por parte do presidente do Carf, com poder de desempatar julgamentos que colocam frente a frente o pagador de impostos e o Estado. Formado por seis integrantes, três do setor privado e três do governo, o conselho tem sua presidência vinculada à Fazenda Nacional. Quando há empate, o voto de qualidade é invocado — e costuma favorecer a Receita. Um levantamento do professor Eurico de Santi, da Fundação Getulio Vargas, mostra que, entre 2015 e junho de 2016, o voto de qualidade foi utilizado em 347 oportunidades — em nenhuma delas a decisão beneficiou os contribuintes. “O voto de qualidade foi muito usado para construir uma jurisprudência desfavorável aos contribuintes. Existe um princípio no direito penal que determina que, em caso de dúvida da Corte, a decisão deve ser favorável ao réu”, explica o advogado tributarista Roberto Duque Estrada. Entre os adversários do fim do voto de qualidade está a Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil, composta justamente de servidores que recebem “bônus de produtividade” por multas aplicadas às empresas.
Enquanto aguardam a tramitação no STF, uma série de fatores contribuiu para o marasmo no Carf. Usando a pandemia de Covid-19 e a paralisação de servidores públicos em busca de aumentos salariais como justificativa, o conselho tem protelado de forma sistemática os julgamentos de causas que envolvem grandes montantes financeiros, justamente em um momento em que o voto de qualidade está suspenso. “Antes da MP do governo, as votações no Carf eram quase sempre cartas marcadas, com multas absurdas e irreais, que em última análise beneficiam os servidores”, diz um representante de uma empresa com processos paralisados no conselho. Enquanto o STF não decide, a novela distópica trilionária do Carf segue em exibição.
Publicado em VEJA de 2 de março de 2022, edição nº 2778