O péssimo sinal do governo ao tentar emplacar Mantega na chefia da Vale
Trata-se de mais uma ofensiva da gestão Lula para ampliar sua presença em ex-estatais — um alerta para investidores do Brasil e do exterior
Quem tem um amigo tem tudo, já diziam os cantores Emicida e Zeca Pagodinho, citando um dito popular na música de mesmo nome. A crença é válida para o ex-ministro da Fazenda Guido Mantega. E o amigo que ele tem é a pessoa mais influente do país: o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Nas últimas semanas, Mantega viu esse amigo, ou “companheiro” — como é comum dizer entre os membros do partido de ambos, o PT —, empreendendo um esforço de bastidor para tentar encaixá-lo na cúpula da Vale, a segunda maior empresa brasileira. No centro da meta estava o cargo de presidente executivo, um dos mais cobiçados e bem remunerados do meio corporativo. Se não na presidência, estaria em jogo obter ao menos um lugar no conselho gestor da Vale.
A ofensiva do Planalto não foi solitária. A presidente do PT, Gleisi Hoffmann, foi o rosto da operação. Ela veio a público, na quinta-feira 25, em defesa da indicação de Mantega para o comando da empresa. Nas redes sociais, afirmou que ele é um dos “pouquíssimos brasileiros” qualificados para compor o conselho da empresa, grupo do qual fazem parte os representantes dos acionistas. Por outro lado, a empresa recebeu a comunicação de uma multa de 47 bilhões de reais por danos causados com a ruptura da barragem de Mariana — tragédia pela qual a Vale tem mesmo de responder.
Ao contrário do que sugeriu Gleisi, o currículo de Mantega não indica predicados necessários para assumir uma cadeira no topo de uma das maiores mineradoras do mundo, que compete em um mercado acirrado e específico. “A indicação do Mantega, que nem bom ministro foi, não tem critério técnico, só afetivo”, diz a economista Elena Landau, ex-conselheira da Vale. “O governo não se conforma que a empresa se tornou privada.” A pressão por Mantega pegou mal na diretoria e no conselho da empresa e repercutiu no mercado. O PT se viu obrigado a ensaiar um recuo na ofensiva. “O compliance da Vale criou mecanismos que impedem a contratação de um presidente que não tenha condições técnicas importantes, e ele não tem”, diz Pedro Galdi, analista de investimentos da corretora Mirae Asset.
Apesar da derrota momentânea, o governo deve seguir em seu impulso intervencionista. O episódio da Vale foi mais um de uma série de iniciativas para aumentar a influência política em setores estratégicos. No de energia elétrica, houve a tentativa de ampliar os votos do governo no conselho de administração da Eletrobras, outra empresa que, como a Vale, é uma ex-estatal. Na área do saneamento, houve gestões para alterar o marco regulatório, que foram barradas pelo Congresso. Em óleo e gás, foram feitas mudanças no estatuto da Petrobras após uma alteração na Lei das Estatais que será julgada no plenário do Supremo Tribunal Federal.
A bem da verdade, a Vale, privatizada em 1997, sempre esteve na mira do PT. Em 2009, começaram as pressões pela demissão do então presidente, Roger Agnelli, que resistiu no cargo até 2011. À época, Lula criticava a empresa por investimentos fora do Brasil e pela aquisição de bens de capital, como navios, de fornecedores estrangeiros. E era justamente Guido Mantega que liderava as pressões junto aos acionistas de referência, classificadas internamente como “insuportáveis”. Um alto executivo da companhia diz reservadamente: “O governo quer reescrever o passado e o recado é claro: interferir na atividade econômica”.
Hoje, o cenário não é igual ao de 2009, e por isso o governo, até aqui, não foi bem-sucedido. Naquela época, a parcela de ações da Vale sob influência da União era de 26,5%, que somava fatias do BNDESPar e da holding Litel Participações, formada pelos fundos de pensão Previ, Petros e Funcef, todos de funcionários de estatais. Hoje, apenas a Previ, dos servidores do Banco do Brasil, tem representação no conselho, por seus 8,6% do capital da Vale. “Criamos vacinas para intervenções políticas muito grosseiras, como a pulverização do controle da Vale”, diz Sérgio Lazzarini, professor do Insper e especialista em privatizações. “Infelizmente, não fomos vacinados em outras frentes.”
O primeiro ataque intervencionista feito pelo governo Lula 3 foi por meio de um decreto para tentar esvaziar o Marco do Saneamento, aprovado em 2020. Isso mesmo depois de o setor privado ter mostrado resultado em uma área carente, como ocorreu com a privatização da operadora Cedae, no Rio de Janeiro. As principais mudanças introduzidas — e derrubadas na Câmara — previam que empresas públicas estaduais de água e esgoto pudessem prestar serviços por meio de contratos sem licitação e ainda incluir na sua comprovação de capacidade econômico-financeira operações que hoje estão sob contestação.
Em seguida, foi a vez da Eletrobras. No ano passado, a União ingressou com ação no STF para que tenha voto proporcional às ações que detém da empresa. O governo argumenta que a lei diminuiu de maneira irregular o peso dos votos a que teria direito. Com a privatização, a União permaneceu detentora de 42% das ações; no entanto, a proporção de votos do governo foi limitada a 10%. A ação ainda está no STF.
Outra frente aberta para flexibilizar indicações políticas foi a retirada de trechos da Lei das Estatais, que perdeu fôlego após decisão do então ministro do STF Ricardo Lewandowski, hoje ministro da Justiça. Como um de seus últimos atos no tribunal, ele concedeu liminar retirando a quarentena de três anos para que políticos possam assumir cargos de direção em empresas públicas. A Petrobras já alterou seu estatuto para receber indicações.
Essas pressões ocorrem em meio a outras urgências, principalmente fiscais. O governo anunciou que teve déficit de 230 bilhões de reais em 2023, o equivalente a 2,1% do PIB. O resultado nominal não é bom, já que a meta era um déficit de 1% do PIB. Mas o acréscimo foi resultado da decisão de pagar precatórios (dívidas da União com trânsito em julgado) e do acordo feito com governadores para compensar perdas do ICMS sobre combustíveis.
Apesar da louvável iniciativa de zerar pendências anteriores, o resultado deixa dúvidas quanto ao alcance da meta de equilíbrio das contas neste ano. Só isso já seria uma tarefa e tanto. Mas o governo cria problemas adicionais para si mesmo e para o país com seu pendor intervencionista e afrontoso ao setor privado. O histórico de ingerências do passado deixou um rastro de corrupção, distorções de mercado e ineficiência. Sua volta gera um ambiente de incerteza para os investidores, brasileiros e estrangeiros. Seria melhor passar sem isso — palavra de amigo.
Publicado em VEJA de 2 de fevereiro de 2024, edição nº 2878