O risco do flerte de Bolsonaro com a gastança para reaquecer a economia
O presidente vive uma encruzilhada entre a pauta liberal de Guedes e a tentação de usar todos os recursos também para alavancar sua popularidade
Em um traço característico de sua persona pública, o presidente Jair Bolsonaro costuma adotar discursos e atitudes tranquilizadoras quando flerta com um risco iminente. Na última quarta-feira, 12, exercitou com afinco o lado diplomático e apaziguador de sua personalidade habitualmente truculenta e explosiva para dissipar os rumores de que está desembarcando da estratégia econômica desenhada pelo ministro Paulo Guedes em favor de uma nova manobra política, baseada na abertura dos cofres públicos, como forma de pavimentar sua reeleição em 2022 (um objetivo evidente desde a sua posse). Em sua missão de ressaltar o compromisso com Guedes, Bolsonaro publicou logo pela manhã nas redes sociais uma mensagem defendendo o teto de gastos, a responsabilidade fiscal e até as privatizações, junto com uma foto em que aparece ao lado do ministro da Economia e de Tarcísio Gomes de Freitas, da Infraestrutura, um dos representantes do time a favor da gastança. À tarde, convocou ao Palácio da Alvorada os chefes do Legislativo, líderes no Congresso, além de Guedes e outro de seus adversários, Rogério Marinho, ministro do Desenvolvimento Regional. Após a reunião, todos rumaram a um palanque improvisado. Dessa vez, a cena não deu muito certo. Numa breve manifestação, o presidente disse que o governo vai respeitar o teto de gastos. Os presidentes da Câmara, Rodrigo Maia, e do Senado, Davi Alcolumbre, reforçaram o coro. Nenhum deles, no entanto, mencionou o nome de Paulo Guedes ou anunciou medidas destinadas a conter os gastos públicos ou acelerar a tramitação de qualquer ponto da agenda do ministro no Legislativo.
A manifestação de Bolsonaro, necessária e bem-vinda, teve o cunho pragmático que caracteriza suas ações. Na noite anterior, o anúncio da demissão de Salim Mattar e Paulo Uebel, dois dos secretários mais importantes da equipe de Guedes, provocou alvoroço entre empresários e investidores com relação ao futuro do país e a uma eventual queda do próprio ministro. A situação ficou pior com uma declaração do ministro em que ele não escondeu sua irritação com a situação. “Se me perguntarem hoje se houve uma debandada, digo que hoje houve uma debandada”, afirmou Guedes sobre a demissão dos auxiliares. E aproveitou para atacar seus colegas perdulários no governo, entre eles a ala militar. “Os conselheiros do presidente que o aconselham a pular a cerca e a furar o teto vão levá-lo para uma zona sombria, uma zona de impeachment, de irresponsabilidade fiscal”, avisou. Assim que o mercado abriu no dia seguinte, a taxa de juros para contratos de longo prazo bateu em quase 8% ao ano (diante dos 2% da taxa oficial, a Selic). E, mesmo com as sucessivas tentativas de acalmar os ânimos, os investidores que financiam o Tesouro Nacional passaram a cobrar de 2% a 5% acima dos valores no dia anterior. O Banco Central precisou fazer três leilões de dólares entre quarta e quinta-feira 13, para controlar uma nova escalada da moeda americana, que chegou a bater 5,50 reais. A bolsa de valores também descolou das congêneres no exterior. Enquanto lá os índices subiam, aqui desciam. Mesmo que em dimensão muito inferior à de dias de sangria violenta registrados anteriormente, como os que sucederam ao estouro da Covid-19, foram sinais alarmantes.
“Bolsonaro é a favor de privatizar. Mas que ele não é um liberal, não é mesmo. Eu sou liberal, o Guedes é liberal. Ele não.”
Salim Mattar, ex-secretário de Desinvestimento e Desestatização
A verdade é que a crise da semana passada sinaliza, de fato, uma encruzilhada vivida por Bolsonaro, uma tensão que não se dissipou com a sua fala, que vai permanecer nos próximos meses e da qual depende o futuro do país. O presidente procura demonstrar convicção e comprometimento com a pauta liberal de Guedes, a quem jurou comprometimento absoluto com o teto de gastos. Mas, influenciado pelo discurso de alguns ministros militares, ele flerta ao mesmo tempo com a perspectiva de usar todos os recursos de que dispõe para impulsionar sua popularidade e praticamente garantir seu segundo mandato. O Auxílio Emergencial, medida mais que bem-vinda para sustentar a renda de 50 milhões de brasileiros que vivem em situação de pobreza durante a pandemia, tornou-se uma armadilha à medida que o pacote não só asfixia as contas públicas deste ano, mas também aguça o apetite dos gastadores ao redor do presidente. No raciocínio dessa turma, a porteira está aberta. Já foram sacados do Tesouro 700 bilhões de reais além do Orçamento previsto para 2020. Obviamente, a perspectiva de manter o benefício em 2021 — e, quem sabe em 2022, por meio da extensão do orçamento de guerra — anima pelo menos metade do Congresso. Outra tentação nos bastidores é flexibilizar o teto de gastos para permitir mais investimentos públicos, com o objetivo de reaquecer a economia. Seria lindo, caso o mundo fosse simples. O problema é o efeito colateral dessas medidas: levar o país à bancarrota, um filme que já vimos e nunca termina bem. “A pressão pelo aumento de despesas públicas por parte do Executivo ou do Legislativo não é um fenômeno novo, acontece sempre”, afirma o ex-ministro da Fazenda Henrique Meirelles. “Mas é preciso lutar pelo teto de gastos, que foi o que permitiu a volta da confiança e que nos tirou da maior recessão da história do Brasil. Sem ele, o custo será muito alto.”
Entre os culpados pelo reaparecimento dessa volúpia com o dinheiro público está a pandemia. Em meio ao esforço para pôr em pé programas de emergência, o que era importante de fato para sustentar a economia a partir do próximo ano foi deixado de lado. As privatizações e as reformas, principalmente a administrativa, foram esquecidas ou postergadas, o que resultou no recente pedido de demissão dos dois secretários da Economia. Com a agenda econômica dependendo apenas da tributária, que vai ser uma batalha confusa no Congresso, a pressão da ala militar contra o Posto Ipiranga também cresceu. Guedes teve de abrir a carteira, recuar, enquanto a popularidade do presidente no período (mesmo com toda a crise rolando e perdas de assessores estrelados, como Sergio Moro) se manteve intacta. Seus críticos perceberam o momento e tentam agora envenená-lo com o presidente, dizendo que ele é arrogante no trato pessoal e amador no jogo político. No Planalto, seus detratores argumentam que ele é o fio desencapado que atrapalha as negociações com os parlamentares. Um assessor presidencial, pedindo anonimato, diz que Guedes “ainda se acha o superministro, porque tem uma boa relação com o presidente, mas não percebeu que diminuiu de tamanho”. Evidentemente, o ritmo e o tamanho das reformas prometidas por Guedes não ocorrem como o planejado. Poderia ser melhor? Sim, sem dúvida. Mas nessa briga de visões antagônicas dentro do governo ele não apenas tem razão nos pontos que defende como é a maior esperança de um ajuste nas contas públicas, algo que pode elevar o Brasil a um outro patamar. Se essa campanha der certo em algum momento, sua saída do ministério seria uma grande derrota para o país.
O perigo com que Bolsonaro flerta não é apenas se colocar numa possível rota de impeachment, como alertou Guedes. Caso ceda à tentação de abrir o cofre sem responsabilidade, o presidente abortará um esforço econômico em curso desde 2016, quando o Brasil conseguiu se livrar de um projeto que estava minando a perspectiva de desenvolvimento. Pior. Vai se meter numa situação que certamente cobrará um alto preço — e provavelmente antes da eleição de 2022. Se há uma armadilha macroeconômica brasileira, é acreditar que, por meio do gasto público e de subsídios, será gerada uma demanda benéfica com uma resposta também favorável por parte da oferta. O resultado, conforme mostra toda a vasta experiência brasileira na heterodoxia econômica, é desastroso: pressão inflacionária, desequilíbrio do balanço de pagamentos e agravamento da situação fiscal, com todo o efeito negativo sobre expectativas de investidores, nacionais e internacionais. “Há aqueles que acreditam que tudo é uma questão de ‘vontade política’ para promover o crescimento, de adotar uma política expansionista de caráter permanente”, afirma Pedro Malan, ministro da Fazenda de Fernando Henrique Cardoso e que teve também de segurar colegas, como o ex-ministro da Saúde José Serra, de ímpeto gastador. “A verdadeira vontade política que nos falta no momento é a de encarar a necessidade de responsabilidade fiscal e de reformas, sem as quais continuaremos a adiar nosso encontro com o futuro”, diz.
Em meio à campanha eleitoral, em 2018, forjou-se a ideia de que a figura do superministro personificado por Guedes seria suficiente para manter Bolsonaro, sabidamente comprometido com interesses de setores do funcionalismo público, nos trilhos. Salim Mattar foi um dos que acreditaram. Deixou a Localiza, sua empresa bilionária, pousou o seu jato Dassault Falcon em Brasília e alugou por cerca de 80 000 reais uma mansão próximo do Lago Paranoá. Bateu com a cara no muro do corporativismo governamental e não conseguiu privatizar uma empresa sequer. “O establishment não é muito favorável às privatizações. Senti que o esforço despendido versus o resultado é negativo”, disse Salim a VEJA. Para Mattar, Bolsonaro, com seu pragmatismo peculiar, não é parte desse establishment, composto dos poderes Judiciário e Legislativo, servidores públicos, funcionários de estatais, além dos partidos de oposição. “Bolsonaro é a favor de privatizar e é quem mais fala de vender os Correios. Mas que ele não é um liberal, não é mesmo. Eu sou liberal, o Guedes é liberal. Ele não. Ele só gosta da pauta”, avalia.
Esse traço do presidente é visível também na troca do líder do governo na Câmara, em que removeu Vitor Hugo (PSL-GO) e nomeou Ricardo Barros (PP-PR), nome forte do Centrão, em mais um aceno ao grupo que trouxe paz à sua gestão. O acerto com o bloco é importante do ponto de vista da governabilidade, algo que não acontecia anteriormente. Mas poucos acreditam que desse casamento nascerá um filho de caráter liberal, com uma agenda responsável e que atraia investimentos da iniciativa privada brasileira e do exterior. “Quando olho o contexto político, eu me questiono para onde vamos”, diz Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central. “O presidente foi contra a reforma da Previdência, enviou uma reforma tributária modesta e tenta fazer mais bondade com o Auxílio Emergencial. Um caminho tem que ser sinalizado. E o principal envolve a reforma tributária, a PEC Emergencial e a reforma do Estado”, aponta Fraga.
A reforma tributária, promessa eleitoral de Bolsonaro, foi, de fato, enviada — mas pela metade. A segunda parte, que inclui uma versão requentada da famigerada CPMF, é tão polêmica que pode mais atrapalhar do que ajudar a resolver a barafunda fiscal brasileira. A PEC Emergencial, por sua vez, está no Senado e avança lentamente pelas comissões legislativas. E a reforma administrativa repousa numa gaveta do Palácio do Planalto, pois Bolsonaro acredita que perderá votos valiosos se for aprovada. O presidente chegou a assinar a versão de Guedes em março, mas sempre argumenta que não é a hora de enviá-la ao Congresso. “Cada funcionário público tem, em média, quatro familiares. Então, se for reduzido o salário de mais de 10 milhões de servidores do Brasil, serão cerca de 40 milhões de votos a menos”, disse ele a Guedes, certa vez, provavelmente reproduzindo informações (não confirmadas) que lhe chegaram do núcleo gastador do governo. A realidade é que, sem as reformas necessárias, o Brasil dificilmente avançará. “Se o desejo é gerar empregos, melhorar a distribuição de renda e aumentar o salário real, é preciso abrir a economia, privatizar de verdade e assegurar que os gastos se mantenham constantes sem prejudicar a saúde e a educação”, prescreve Pérsio Arida, ex-diretor do Banco Central.
O flerte brasileiro com o desenvolvimentismo é histórico, e sempre terminou mal. O mais recente episódio desse vício crônico se deu com o rompimento do governo de Luiz Inácio Lula da Silva com a austeridade fiscal, em 2008, para combater a letargia causada pela crise financeira internacional. O que era para ser uma estratégia anticíclica se tornou uma desastrada política de Estado no governo de Dilma Rousseff, a Nova Matriz Econômica, que produziu um choque fiscal e cambial que derreteu a economia do país. Contudo, essa não foi a maior oportunidade perdida. Na biografia do economista Roberto Campos escrita por Ernesto Lozardo, ex-presidente do Ipea, conta-se como o então ministro do Planejamento apresentou ao presidente Castello Branco, em 1964, um plano de reformas que poderia colocar o Brasil pari passu com países desenvolvidos. O general adotou o plano. Lozardo afirma que outro país também se valeu de estratégia parecida, a Coreia do Sul. A despeito da polêmica sobre quem copiou quem, o fato é que o Brasil abandonou o projeto em 1968 para adotar o desenvolvimentismo de inspiração militar, enquanto os asiáticos seguiram firmes no plano liberal. Sem as mudanças, o milagre econômico dos anos 1970 durou pouco e suas consequências demoraram mais de vinte anos para ser sanadas pelo Plano Real. Duas décadas atrás o Brasil não tinha a oportunidade de encampar um modelo liberal para se ver livre das utopias decorrentes dos modelos de influência estatizante. Embarcar numa nova aventura do gênero seria condenar o país ao subdesenvolvimento e ignorar que, em economia, só existe um caminho: o da responsabilidade.
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Clique e AssinePublicado em VEJA de 19 de agosto de 2020, edição nº 2700