O brasileiro não é conhecido por cultivar o hábito de poupar. Em parte, isso pode ser creditado ao baixo nível de renda de grande parcela da população, a qual não conta com uma sobra de dinheiro no fim do mês. Mas utilizar todos os recursos, sem guardar nada para o futuro, também é um estilo de vida. É muito diferente, por exemplo, dos japoneses, que têm enfrentado problemas econômicos nas últimas três décadas exatamente pela alta taxa de poupança interna, que produz impactos na atividade comercial. Como os tempos de pandemia são atípicos, no mundo inteiro passou-se a economizar muito mais do que o habitual — fenômeno que também se repetiu no Brasil. Essa poupança adicional surgiu por dois motivos: precaução, já que até as pessoas mais abastadas se preocuparam com as incertezas pela frente, e por força das circunstâncias, pois mesmo quem quis enfrentou limitações para gastar com o isolamento social.
Essas duas tendências levaram o brasileiro a chegar a este fim de ano com uma poupança adicional que supera 150 bilhões de reais, segundo estimativas do Bradesco. São recursos que estão quase totalmente em mãos das classes médias e altas. Somado a isso, estava previsto, no último trimestre do ano, o pagamento de 138 bilhões de reais do governo para a porção mais pobre da sociedade, incluindo as últimas parcelas do auxílio emergencial, que termina em dezembro, e a retirada que faltava do FGTS. No total, esses recursos formam um bolo de quase 290 bilhões de reais com potencial de se transformar em consumo, um montante que tem alimentado o otimismo do setor de varejo e do próprio Ministério da Economia em suas expectativas para o Natal e nas promoções pós-feriados. A projeção é que as vendas natalinas sejam 3,4% maiores neste ano, movimentando 38 bilhões de reais, segundo a Confederação Nacional do Comércio (CNC).
O cenário potencialmente alvissareiro, no entanto, convive com incertezas. Há dúvidas sobre como a economia vai reagir quando o auxílio emergencial for descontinuado pelo governo. Alguns economistas mais pessimistas estimam queda do PIB no primeiro trimestre, antes que uma recuperação maior possa começar. Integrantes da equipe de Paulo Guedes, por sua vez, reiteram sua convicção de que a poupança acumulada vai se reverter em consumo, evitando a retração econômica. Até por isso, Guedes se sentiu mais confortável para deixar a discussão da criação de um novo programa de renda básica, o Renda Cidadã, para depois da mudança da presidência da Câmara, em fevereiro. A expectativa é de que, até lá, o tema já nem seja tão urgente, devido ao consumo aquecido, e um novo modelo de benefício, que não ameace o teto de gastos, possa ser estruturado com mais calma.
Os argumentos a favor dessa linha de raciocínio mais otimista são consistentes. “Ninguém sabe se a poupança preventiva do brasileiro vai aumentar ou se vai ser sacada”, afirma o economista-chefe do Bradesco, Fernando Honorato. “Minha intuição, a partir da observação da economia americana, com dinâmicas de consumo muito parecidas com a brasileira, é de que as pessoas irão às compras.” Nos Estados Unidos de antes da pandemia, a taxa de poupança em relação ao PIB estava em 7%, subiu para quase 35%, em abril. Em outubro, já era de menos de 15%. Se acontecer algo similar aqui e se a poupança adicional brasileira fosse utilizada integralmente, ela poderia amenizar em até 80% a retirada dos estímulos emergenciais, segundo estudo do Bradesco.
Essa visão, no entanto, esbarra em um componente volátil e imponderável: a expectativa que os brasileiros têm com relação ao futuro. “Há elementos que sugerem um pouco de cautela para 2021. O aumento de poupança pode ser mais duradouro do que se possa imaginar”, pondera Carlos Kawall, ex-secretário do Tesouro Nacional e diretor do Asa Investments. “As classes média e alta, que sofreram menor perda de renda no ano, têm mais propensão a economizar.” Uma pesquisa recente da Confederação Nacional da Indústria com o Ibope indicou que 59% pretendem poupar ainda mais em 2021. Além disso, é unanimidade que, mais do que intenções, o fator mais decisivo para a retomada pelo consumo será o controle da pandemia.
Enquanto a vacinação em massa não acontece, o maior risco é que uma disparada de casos de Covid-19 retraia de novo o mercado depois das festas de fim de ano. Mesmo que não ocorram novos lockdowns, as pessoas podem preferir manter o dinheiro guardado. A volta dos gastos das parcelas de maior renda da população é fundamental nessa equação. Afinal de contas, elas são as maiores clientes do setor de serviços — que representa 70% do PIB e que foi o mais afetado pela crise. Se a indústria já reverteu as perdas do ano, os serviços ainda estavam, em outubro, 6,1% abaixo do patamar anterior à pandemia. “Essas empresas foram as primeiras a ser fechadas e as últimas a voltar. E ainda não estão a pleno vapor”, analisa Rodolpho Tobler, economista do FGV Ibre.
Está aí a grande preocupação para que os índices de desemprego não continuem aumentando. Hoje, 47% da força de trabalho está ocupada, menos da metade da população em idade para trabalhar. Em entrevista publicada na edição passada de VEJA, o ministro da Economia, Paulo Guedes, declarou que seu grande desafio agora seria transformar “uma recuperação baseada em consumo em uma retomada do crescimento baseada em investimentos”. Para a virada de 2021, a torcida — não só dele — é para que pelo menos a primeira parte desse roteiro aconteça.
Publicado em VEJA de 30 de dezembro de 2020, edição nº 2719