Os próximos passos da equipe econômica após a reforma da Previdência
Aprovação do novo regime quebra cultura de privilégios e cria bases para a racionalização dos gastos públicos, abrindo caminho à retomada do desenvolvimento
Reformas estruturais exigem uma mobilização hercúlea. Em primeiro lugar, é necessário garantir a consistência dos fundamentos; em seguida, o comprometimento do governo em sua defesa, o apoio da sociedade e o espírito cívico dos parlamentares. Trata-se de uma equação de alta complexidade, rara na história do país. Na última quarta-feira, 23, esses quatro elementos se alinharam na aprovação de uma mudança radical no sistema previdenciário brasileiro. Foram doze meses de árduas batalhas desde a concepção do projeto, ainda no gabinete de transição, formado logo após a eleição de Jair Bolsonaro. Aprovada, a Proposta de Emenda Constitucional promete economizar 800 bilhões de reais nos próximos dez anos. No Senado, o texto-base idealizado pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, e sua equipe obteve expressivos 60 votos a favor — houve apenas 19 contrários. Durante o processo, não foram poucas as vozes que tentaram persuadir o ministro a embarcar em uma mexida mais tímida, nos moldes da proposta pelo presidente Michel Temer. Entretanto, um obstinado Guedes não transigiu em sua ambição de alcançar resultados de até 1,2 trilhão de reais em dez anos. Ao fim e ao cabo, o resultado, mesmo com o corte de 400 bilhões de reais, foi uma grande vitória — não apenas de Guedes, de sua equipe, de Bolsonaro e de seus apoiadores, mas de todos os brasileiros.
A conquista é alvissareira não só para a sociedade, que já viu tentativas de mudança na Previdência muito mais brandas cair por terra. Medidas de endurecimento nas regras de aposentadoria são impopulares em qualquer lugar do mundo. A aprovação da reforma com o apoio da população revela um amadurecimento importante — há quase um consenso de que o Estado não tem recursos para custear simultaneamente o sistema de pensões vigente e o desenvolvimento econômico. Uma pesquisa realizada pelo instituto Datafolha mostrou que a parcela de brasileiros que apoiam a reforma cresceu de 41% para 47% entre abril e julho. Colaborou para essa mudança de percepção uma característica central da reforma do governo Bolsonaro: ela ataca privilégios. Para ficar no exemplo mais óbvio, o Brasil conta com uma casta de servidores públicos que se aposenta com uma remuneração de até 39 000 reais mensais (e eventualmente acima desse teto). O cidadão comum, porém, não pode receber mais que 5 839,45 reais. Assim que o texto for promulgado, no início de novembro, o funcionalismo terá o mesmo limite dos contribuintes da iniciativa privada. A economia a ser obtida apenas com as pensões dos servidores chegará a quase 160 bilhões de reais — e isso tratando-se de uma categoria que representa apenas 1,9% do universo de trabalhadores no país.
O controle da draga previdenciária entrou no radar de todos os governos nos últimos trinta anos. Com um discurso a favor de reformas radicais, Fernando Collor tentou mexer nas pensões, porém o projeto nem sequer chegou a ser votado. Depois do sucesso do Plano Real, Fernando Henrique Cardoso encaminhou a proposta mais abrangente até então, mas assistiu à derrota vergonhosa do ponto mais importante do projeto, a idade mínima de aposentadoria, quando o então deputado tucano Antonio Kandir errou seu voto ao se confundir com os botões do painel eletrônico. Seu sucessor, Luiz Inácio Lula da Silva, aumentou a idade mínima para os servidores da União. Já Dilma Rousseff aprovou uma regra alternativa ao fator previdenciário, que soma o tempo de contribuição à idade dos trabalhadores. Michel Temer se propôs a alterações mais robustas, porém a negociação política do projeto afundou em meio ao escândalo decorrente da revelação da gravação feita por Joesley Batista no Palácio do Jaburu, que levantou suspeitas de que o então presidente teria aprovado um pagamento de mesada pelo silêncio do ex-deputado Eduardo Cunha.
As dificuldades dos cinco presidentes já mostravam a Guedes que o caminho para aprovar seu projeto seria acidentado. O texto enfrentou resistências assim que foi apresentado, no início do ano. As primeiras mudanças feitas pelo Congresso reduziram a economia total em 160 bilhões de reais ao manter as regras para pensões de pessoas abaixo da linha da pobreza e dos trabalhadores rurais. Outra grande derrota foi a exclusão de estados e municípios do projeto durante os trâmites na Câmara. Essa medida reflete os conflitos de interesses envolvidos na reforma — os deputados não queriam levar a culpa pelos cortes na aposentadoria dos funcionários públicos estaduais enquanto governadores, muitas vezes de partidos rivais, seriam salvos de suas calamidades fiscais pelas mudanças. Em agosto, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), em um esforço de negociação política, conseguiu aprovar as medidas sem comprometer a espinha dorsal da reforma. Apesar das perdas, as disputas comezinhas da política com “p” minúsculo foram suplantadas pelos ganhos. “O que fica para a sociedade é um sistema mais justo e uma economia mais sólida”, comemora Rogério Marinho, secretário especial de Previdência e Trabalho do Ministério da Economia.
O impacto da reforma nas contas públicas será colossal. O alívio permitirá, a longo prazo, a volta dos investimentos em setores essenciais para a retomada do crescimento econômico. A reforma também acena ao setor privado a disposição do governo de manter suas contas em ordem. Os sinais de aprovação se fizeram notar a partir da segunda 21, quando a Bolsa de Valores de São Paulo (B3) cravou três dias de recordes sucessivos, chegando a 107 000 pontos, e o dólar registrou sua cotação mais baixa nos últimos dois meses. Entretanto, ainda há muito a ser feito. “É preciso tomar uma série de medidas em relação ao corte de gastos nos próximos anos para pôr as contas públicas em equilíbrio. Sem contar que ainda são necessárias outras reformas para impulsionar de fato o crescimento do país”, avalia Shelly Shetty, diretora sênior da agência americana de avaliação de risco Fitch Ratings.
O ministro Paulo Guedes, agora, precisa se dedicar às outras reformas que se propôs a realizar. Uma vez naufragado o projeto voltado à área tributária, calcado no imposto sobre movimentações bancárias, ele passou a mirar duas frentes. A primeira é a reforma administrativa, que busca aproximar as regras do serviço público às da iniciativa privada. A segunda é a do pacto federativo, que visa a redistribuir recursos da União entre estados e municípios. O projeto prevê que, em dez anos, a cota destinada a governadores e prefeitos seja de 70% — atualmente é de 40%. Além disso, mais de 200 fundos destinados a financiar o desenvolvimento de diversos setores econômicos e regiões do país devem ser extintos.
Tomando como base o tempo que Guedes levou para aprovar as novas regras da Previdência (245 dias), os trâmites de tais projetos no Legislativo só seriam concluídos por volta de julho de 2020 — e mesmo assim se fossem entregues à Câmara na próxima semana. Contudo, a partir de maio as atenções dos deputados e senadores estarão totalmente focadas nas eleições municipais. “Essas reformas ainda não foram debatidas. E o pior: não há como discutir o novo pacto federativo sem a reforma tributária. Seria caótico, porque estamos falando de duas mudanças profundas nas rendas dos estados e dos municípios”, alerta Ernesto Lozardo, economista da FGV. O primeiro grande passo já foi dado. O caminho à frente, porém, é longo e acidentado.
Com reportagem de Larissa Quintino
Publicado em VEJA de 30 de outubro de 2019, edição nº 2658