Plano Verão foi para salvar eleição de 1989, não inflação, diz ex-ministro
De acordo com Mailson da Nóbrega, último congelamento de preços de Sarney foi só para manter estabilidade até a primeira eleição democrática daquele ano
Quando o Plano Verão, o quarto pacote contra a inflação do governo de José Sarney, foi lançado, em fevereiro de 1989, as equipes do presidente já tinham desistido de vencer o descontrole de preços. O Plano Cruzado I e o Plano Cruzado II, de 1986, e o Plano Bresser, de 1987, já tinham tentado e, depois de poucos meses, fracassado, à base de medidas de choque radicais como o congelamento de preços e salários.
No início de 1989, pouco menos de dois anos após o Plano Bresser, a briga já estava claramente perdida de novo, com a inflação rodando de volta nos 20% ao mês – ela chegou a passar breves períodos abaixo dos 5% a cada vez que um novo plano era lançado, mas, em todos, voltou a subir com mais força logo depois. Aquele ano, entretanto, tinha uma particularidade em relação aos anteriores e a qualquer outro depois: em novembro, aconteceriam as primeiras eleições presidenciais diretas do país desde a vitória de Jânio Quadros em 1960 e a interrupção do mandato, posteriormente, de seu vice, João Goulart, com o golpe militar de 1964.
Mesmo já sabendo que fazer mais um congelamento daria os mesmos curtos e poucos resultados, foi essa a escolha do governo naquele momento para garantir que nenhuma desordem voltasse a impedir aquele pleito.
“Em 1987, já tínhamos reunido a equipe e decidido que íamos trabalhar apenas para não perder o controle da inflação, para não deixá-la disparar, porque combater era impossível”, contou a VEJA o então ministro da Fazenda, Maílson da Nóbrega, em entrevista pelos 30 anos do Plano Real, que acabaria com a hiperinflação apenas em julho de 1994. A reportagem completa está na edição desta semana da revista.
“Em agosto [de 1987], ela já estava de volta aos 20% ao mês e, em uma reunião da equipe econômica com o presidente, eles disseram que não tinha jeito, que íamos fazer um novo congelamento. Mas, nesse caso, o objetivo não era acabar com a inflação. Era só ter um instrumento para levar o governo até o fim. Porque 1989 era o ano da primeira eleição presidencial desde 1960, e um desarranjo na economia poderia afetar o andamento das eleições e o seu resultado. Foi daí que surgiu o Plano Verão.”
Similar aos anteriores, o Plano Verão trocava mais uma vez a moeda (de cruzado para cruzado novo), cortava três zeros das notas (as de Cz$ 10.000 viravam NCz$ 1.000), congelava preços, controlava o reajuste dos salários e propunha derrubar as indexações, que eram os reajustes automáticos com os quais os pagamentos já estavam acostumados há anos e, justamente, o principal agente causador da doença hiperinflacionária brasileira. Foi, de toda maneira, o mais efêmero dos quatro planos até então: a inflação cedeu para abaixo dos 10% por apenas dois meses e, até as eleições, em novembro, já tinha saído do controle a tal ponto que batia quase os 50% ao mês, nos níveis mais altos registrados na história até ali.
“Quando, no fim do ano, passou dos 50%, já era claro que o Collor ia fazer algum congelamento também para começar o governo”, conta Nóbrega. “Mas era importante que se garantisse um presidente eleito, com credibilidade, legitimidade e força política para fazer as reformas que a gente não tinha conseguido fazer.”
Fernando Collor de Mello venceu Lula e foi eleito em 17 de dezembro de 1989, e assumiu a Presidência em 15 de março do ano seguinte. Um dia depois, anunciava o “Brasil Novo”, programa que ficaria mais conhecido como “Plano Collor” e pelo bloqueio do acesso a quase todos os valores que as pessoas tinham depositados nos bancos. O confisco das poupanças valeria por 18 meses e era uma precaução extrema para completar os congelamentos de preços, medida que também estava no pacote. A ideia era evitar a corrida de gastança e consumo que tradicionalmente acontece nos primeiros momentos depois de choques que derrubam os preços. Como bem se sabe, outro projeto que daria miseravelmente errado.
Nóbrega, hoje sócio da Tendências Consultoria e colunista de VEJA, comandou o ministério da Fazenda de 1988 até o fim do governo Sarney, em março de 1990, e já vinha de outros cargos na equipe da Fazenda em que participou das negociações do país com o Fundo Monetário Internacional (FMI) e também das discussões dos planos anteriores de combate à inflação.
Ele explica que, apesar da reação imediatamente negativa que a ideia de medidas tão heterodoxas como o congelamento de preços causa hoje, elas eram uma das opções no cardápio internacional de combate ao surto de hiperinflação que tomou diversos países latinos e outros emergentes à época. Foi, por exemplo, a base do programa de 1985 que conseguiu acabar com a hiperinflação em Israel e que inspirou as primeiras versões dos projetos brasileiros.
No caso do Brasil, os congelamentos também ganharam temporariamente apoio nos meios econômicos conforme crescia o diagnóstico de que os mais tradicionais ajustes fiscais ou monetários, que já vinham sendo tentados, não eram mais suficientes para combater o avanço dos preços – ou teriam que ser irrealisticamente enormes para fazer frente a inflações que logo passariam dos 1.000% ao ano. A essa altura, ganhavam força as análises de que, embora existisse, não era mais a expansão irrestrita de moeda e de gastos públicos que retroalimentava a inflação – mas, sim, o próprio fato de a inflação existir, ou o que os economistas chamam de inércia.
No Brasil, eram os diversos mecanismos de correção automática e alucinada de preços, a chamada indexação, criada e ampliada ao longo de anos anteriores, que faziam esse papel. Eles iam desde preços, salários e contratos até impostos, títulos e poupanças – tudo subia automaticamente com a inflação, em muitos casos corrigidos pelo próprio governo, e em intervalos tão curtos quanto um mês.
“Quando os acordos com o FMI começaram, o Brasil cumpria todos os itens”, conta Nóbrega. “Tinha atingido as metas de déficit público, de reservas internacionais, de ativos do sistema financeiro. E, mesmo com tudo isso, a inflação não cedia, porque ela se retroalimentava, ela já era resistente a tudo isso. Ao fim, o acordo com o FMI comprovou que a inflação brasileira precisava de outro remédio, e que o desafio era encontrar uma maneira de desindexar a economia. E foi aí que começaram a surgir as principais ideias que seriam testadas.”
Depois de seis grandes planos frustrados e de passar dos 6.000% ao ano nos piores momentos, no início dos anos 1990, a hiperinflação só seria vencida em 1994, com o Plano Real, que seguiu por um caminho teórico completamente diferente. Em lugar dos congelamentos e choques de preço, o time comandado pelo então ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, optou por uma espécie de versão nacionalizada e suavizada de dolarização. Isso foi feito por meio da URV, moeda virtual de referência usada na transição, e do lastro do novo real ao dólar, em um regime de câmbio fixo.
“O Plano Real se beneficiou não só dessa genialidade, mas também da experiência dos planos antecessores”, diz Nóbrega – lembrando, ainda, que vários dos integrantes do time do Real tinham também participado dos projetos anteriores, como Edmar Bacha, Pérsio Arida e André Lara Resende. “O Real só deu certo e só poderia dar certo porque os outros existiram. O Brasil já tinha aprendido o que acontecia quando mudava uma moeda e como deveria tratar os salários, aluguéis, títulos públicos, ativos financeiros e todos os tipos de contratos. Essa tecnologia evoluiu com os planos anteriores.”