Privatizar a Sabesp, a maior companhia de saneamento básico do Brasil, já seria uma tarefa difícil em condições ideais, mas a realidade é ainda mais complicada. De um lado, os investidores estrangeiros andam ariscos com as incertezas da economia global. Por aqui, os arroubos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva contra a política monetária e a austeridade fiscal alimentam a volatilidade do mercado. Além disso, a insegurança jurídica assusta, quando o próprio Supremo Tribunal Federal se dispõe a avaliar as queixas de Lula sobre o poder de voto da União na Eletrobras, privatizada em junho de 2022. “Nesse cenário, a venda da Sabesp é quase um milagre”, afirma Elena Landau, ex-diretora de privatizações do BNDES. O milagre está próximo, e um sinal é o interesse de grandes gestores de fundos em adquirir ações que o governo paulista está vendendo desde o dia 1º de julho. Nessa operação, foi posto à venda na bolsa o suficiente para que até 22 de julho estejam em mãos privadas 82% do capital. “Muitos querem sugerir o nosso modelo para a privatização de outras concessionárias”, diz Natália Resende, secretária estadual de Meio Ambiente, Infraestrutura e Logística.
O que pode transformar a Sabesp num modelo são as respostas que a equipe do governador Tarcísio de Freitas encontrou para problemas que afligem casos malsucedidos no setor mundo afora. Desde o ano 2000, ao menos 260 cidades europeias reestatizaram os serviços de água e esgoto, o que leva os opositores a dizer que São Paulo está na contramão do mundo. “Estudamos os bons e os maus exemplos”, diz Resende. Para evitar os desafios de escala e eficiência vistos em Paris, onde a privatização, nos anos 1980, dividiu a área metropolitana entre diversas empresas, a Sabesp terá um contrato unificado com 371 municípios até 2060, permitindo uma gestão racional de todo o sistema. A tarifa cobrada pelos serviços é outro ponto crucial. Afinal, a Equatorial, empresa que caminha para ser a investidora de referência da Sabesp, com 15% do capital, espera o retorno dos 70 bilhões de reais que deve investir para universalizar os serviços até 2029, como previsto no contrato. Hoje em dia, o reajuste das tarifas incorpora a previsão de investimentos dos próximos anos. A nova fórmula vai remunerar a Sabesp pelo que já investiu — um modelo inspirado no Chile, onde 94% do serviço é privado.
Para que essa conta não pese no bolso do consumidor, o modelo paulista se baseia em duas tarifas que serão arbitradas pela Agência Reguladora de Serviços Públicos do Estado de São Paulo (Arsesp). A primeira é a tarifa de equilíbrio, criada para remunerar a Equatorial em troca dos investimentos na Sabesp. A outra é a tarifa que será cobrada dos usuários, que deverá ser menor. Para tanto, foi criado um fundo de apoio à universalização do saneamento, que será abastecido com 30% do que o governo arrecadar com a venda. Como o estado ficará com 18% da Sabesp, o fundo também receberá os dividendos pagos ao governo. Assim, mesmo com os investimentos até 2029, os idealizadores da privatização estimam que a tarifa caia entre 1% e 10% para diferentes usuários. “Criamos um ambiente que incentiva o investimento, mas mantém a definição periódica das tarifas ancorada na capacidade de pagamento dos usuários”, diz Thiago Mesquita Nunes, presidente da Arsesp.
A falta de regras claras foi o maior problema das primeiras privatizações do setor. “Discutia-se no Judiciário até se a gente poderia cortar a água dos inadimplentes”, diz Claudio Abduche, presidente da Águas do Brasil, que opera quinze concessões, incluindo as de Petrópolis e Niterói, que estão entre os dez melhores serviços de saneamento do país, segundo o Instituto Trata Brasil. Ele atribui o reconhecimento a uma fórmula: investimento em qualidade. Quando chegou a Niterói, 25% dos moradores não tinham acesso a água tratada. Depois de mais de vinte anos e 1,3 bilhão de reais investidos, a rede abastece 100% dos 480 000 habitantes. A consultoria Inter.B estima que, para o Brasil cumprir a meta de universalizar o saneamento até 2033, seja necessário investir 50 bilhões de reais por ano — o dobro do desembolsado em 2023. “O poder público, sozinho, não atingirá a meta e precisa da iniciativa privada”, afirma Christianne Dias, diretora-executiva da Abcon, a associação das concessionárias privadas. É o que a privatização da Sabesp quer mostrar ao Brasil agora.
Publicado em VEJA de 5 de julho de 2024, edição nº 2900