Por que a situação da Latam é a mais delicada entre as aéreas brasileiras
Companhia desligou quase 30% do quadro de funcionários e quer reduzir salários permanentemente; novos casos de Covid-19 podem retardar a retomada
A Latam sempre foi referência para o setor aéreo da América Latina, antes mesmo de se tornar Latam, com a fusão entre o grupo chileno e o brasileiro, em junho de 2012. A história da gigante começou em 1976, quando a Transportes Aéreos Regionais (Tam) surgiu sob as mãos do comandante Rolim Amaro. Desde então, a trajetória da companhia oscilou entre altos e baixos, marcada por acontecimentos históricos, assim como por graves acidentes também, mas que dificilmente tiraram seu pioneirismo. É da empresa, fundada em Marília, no interior de São Paulo, alguns marcos importantes na aviação do país: o pioneirismo do programa de milhagem, a grande malha internacional, abertura de capital na Bolsa de Valores em São Paulo e Nova York, entre outros marcos. Contudo, a pandemia do novo coronavírus paralisou as atividades do setor e interrompeu bruscamente o tráfego aéreo no mundo todo. Frear repentinamente uma máquina gigantesca e que estava em pleno funcionamento não é das missões mais fáceis.
Em abril, a Latam precisou suspender todos os voos internacionais e operou apenas em seus países de origem — Brasil e Chile –, mas com redução de 95% da oferta. O prejuízo se aproximou de impressionantes 5 bilhões de reais (890 milhões de dólares) no segundo trimestre de 2020, considerado o pior da história da companhia. Cabe destacar que Azul e Gol também contabilizaram prejuízos, mas em ordem significativamente menor em relação à chileno-brasileira — 2,9 bilhões e 1,9 bilhão, respectivamente. Hoje, a Latam enfrenta o ônus de ter em mãos uma operação bastante grande. A maior desvantagem da Latam, especificamente na crise do coronavírus, é o elevado número de voos internacionais que a empresa ofertava. Se no último mês de setembro a demanda por voos domésticos registrou queda de 55,2%, na comparação com o igual período de 2019, o transporte aéreo de passageiros em voos internacionais diminuiu 90,7%, indicando uma recuperação mais lenta do número de viagens para fora do país, segundo a Associação Brasileira das Empresas Aéreas (Abear).
Prova desse contexto internacional incerto foi a decisão do governo federal, publicada na última segunda-feira, 16, de fechar as fronteiras terrestres do Brasil por 30 dias, com exceção dos limites com o Paraguai. As restrições não contemplam o espaço aéreo, mas indicam que o drama de uma companhia que opera, sobretudo, no transporte de passageiros para outros países está longe de chegar ao fim. Até mesmo o aumento no número de casos de Covid-19 que atinge países europeus e os Estados Unidos trazem reflexos. Apesar do cenário extremamente complexo e delicado, a chance de a empresa repetir a Avianca e encerrar as operações no Brasil é remota, na opinião de analistas do setor. “Não acredito em fechamento porque o ativo em si da Latam tem muito valor, uma das possibilidades é uma fusão com a Azul ou uma mudança de estrutura, mas deixar de operar é muito difícil”, analisa André Castellini, especialista em aviação e sócio da consultoria Bain & Company. Até a retomada plena dos voos, que só deve acontecer após a chegada da vacina, a Latam deve continuar cortando gastos. “Para se manter em operação, todas as companhias devem rever os seus compromissos, como o pagamento de dívidas, de debêntures e a redução de folha de pagamentos. A diferença é que algumas realizam esse processo sob proteção legal, como a Avianca e a própria Latam, e outras trabalham fora dos tribunais”, diz.
O estrago causado pela pandemia também atingiu a frota e os funcionários da companhia. Antes da crise, a empresa tinha 158 aeronaves no Brasil. Hoje, são 144, mas apenas 85 estão em operação, por conta da malha aérea ainda reduzida. No âmbito trabalhista, a Latam chegou a firmar uma redução temporária de salários com seus tripulantes — com base na MP 936, que permite a suspensão de contratos –, mas a manutenção dos postos de trabalho se mostrou insustentável. Desde julho, 2.700 tripulantes foram demitidos, de um total de 7 mil. Se considerar os demais cargos, foram aproximadamente 6 mil funcionários desligados, o que representa quase 30% do total do quadro, que contava com 21 mil pessoas antes da pandemia. A Latam ainda alega que há um excedente de 1.200 tripulantes, o que fez a empresa abrir negociações com o Sindicato Nacional dos Aeronautas (SNA) por uma redução permanente de salários, um cenário oposto ao das suas concorrentes, que firmaram acordos temporários com seus trabalhadores.
A justificativa da Latam para essa readequação é de que a companhia paga a seus tripulantes uma remuneração maior em relação às concorrentes. O sindicato, por sua vez, diz que o RASK (Receita por Assento de Quilômetro Ofertado) e o CASK (Custo por Assento de Quilômetro Ofertado) devem ser analisados em conjunto, pois representam o resultado das operações de oferta de transporte aéreo de passageiros. “A proporção do CASK, que contempla o número de assentos ofertados pela companhia em relação aos custos da empresa, indica que o maior custo de tripulação não é o da Latam, mas sim o da Azul”, afirma Ondino Dutra, presidente do SNA, respaldado em um estudo de análise econômica feito pelo sindicato com base em dados oficiais da Agência Nacional de Aviação Civil, a Anac. “A proporção do custo de remuneração da tripulação em relação aos custos dos serviços prestados pela Latam também não é a maior do mercado. Nesse segmento, quem está à frente é a Gol”. Dutra ainda revelou que as negociações estão em fase final, e que a proposta oferecida pela Latam deve garantir uma redução de 20% da folha de pagamento da companhia. Antes de levar os termos do acordo para assembleia, o sindicato pedirá que o Tribunal Superior do Trabalho (TST) se manifeste sobre a legalidade do processo. “Nós lastimamos que a Latam não tenha aceitado a redução temporária e esperamos que essa negociação consiga evitar novas demissões”, conclui.
Procurada por VEJA, a Latam informou que está tomando todas as medidas necessárias para sair da crise como uma empresa mais ágil, eficiente e competitiva. “A Latam é a maior e mais antiga das três empresas que atuam no Brasil e remunera melhor os tripulantes tanto em voos domésticos, quanto em internacionais. Por isso, a empresa tem a necessidade de equiparar-se às práticas do setor e rever seu modelo atual de remuneração”, disse em nota. A companhia ainda ressalta que fechou acordo com dez sindicatos representantes dos aeroviários, contemplando benefícios especiais para quem aderiu ao Programa de Demissão Voluntária (PDV) e à Licença Não-Remunerada (LNR). “O foco da empresa é dar celeridade nas negociações com o SNA e avançar para que a nova proposta seja aprovada o mais breve possível.”
Ainda que negocie com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) o famigerado ‘socorro às aéreas’, que até agora não recebeu a adesão de nenhuma empresa, a Latam Brasil já deu demonstrações de que está disposta a se reorganizar profundamente. Em julho, ingressou na recuperação judicial do grupo nos Estados Unidos — que deve durar de 12 a 18 meses. O movimento assegurou o acesso ao empréstimo de 2,45 bilhões de dólares concedido pelas famílias Cueto e Amaro, Qatar Airways e pelo fundo Oaktree Capital. Outro fator importante para a retomada econômica da companhia está na malha aérea. Em outubro, ela alcançou a marca de 274 voos diários, ainda distantes dos 750 que costumava atingir, mas que dão algum fôlego para a operação. Além disso, foram adicionados quase 3 mil voos para a alta temporada de dezembro de 2020 e janeiro de 2021. A expectativa é de melhores resultados com a chegada da temporada de calor. A demanda tem começado a responder com mais força no mercado doméstico brasileiro entre os viajantes a lazer, fato que sustenta algum otimismo para aquela que costumava dominar o mercado latino-americano.