Problemas estruturais do gasto público impõem desafios urgentes ao governo
Gestão de Lula fica com um orçamento que não consegue gerir, pode ver a dívida crescer e arrisca ter um colapso no serviço público
A próxima segunda-feira, 22, se tornou crucial na agenda econômica do país. É quando será divulgado o balanço do Tesouro Nacional com a evolução das receitas e despesas do governo até junho, e o quanto estas extrapolam (ou não) o dinheiro reservado para elas pelo orçamento do ano. Se não estiverem dentro do previsto, o governo será obrigado a bloquear verbas dos ministérios para o ajuste. Trata-se de uma divulgação rotineira do Tesouro ao longo do ano, mas a expectativa em torno de como e de quanto seria o primeiro grande congelamento de gastos do governo Lula fez até com que o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, adiantasse o anúncio no início da noite da quinta-feira, 18. Um total de 15 bilhões de reais será retido por ora, entre bloqueios e contingenciamentos, de acordo com o ministro. Agora as expectativas ficam para o detalhamento a ser feito no início da próxima semana.
O valor é o mínimo estimado por economistas para que as contas de 2024 comecem a ficar dentro do previsto. Alguns calculam que um corte de 30 bilhões ou mais será inevitável até o fim do ano, caso os gastos sigam crescendo acima do previsto mês a mês. Mas a medida anunciada foi o primeiro sinal para um real dimensionamento do compromisso que — depois de muita pressão — o presidente Lula prometeu ter com o arcabouço fiscal, a regra de controle das despesas desenhada e aprovada por seu próprio governo no ano passado. “Os valores apresentados são fundamentais para selar a confiança na política fiscal”, diz Murilo Viana, economista especializado em contas públicas.
Entregar as contas de 2024 dentro das metas seria apenas o primeiro capítulo de uma história mais longa e ainda mais complexa, na qual uma agenda de revisão de gastos profunda é condição indispensável para o país não derivar para um colapso econômico. Colocar as contas de volta no azul é essencial para controlar o crescimento da dívida pública. Ela está em 81% do produto interno bruto pela metodologia do Fundo Monetário Internacional, e figura entre as mais altas do mundo emergente, o que alimenta a desconfiança com os rumos do país e sua capacidade de voltar a crescer com mais força. “Era para estarmos com a bolsa de valores a 140 000 pontos e o câmbio a 5 reais, mas estamos pagando um prêmio de risco pelas dúvidas deixadas pelo governo”, disse, em entrevista ao programa VEJA MERCADO, o estrategista-chefe da gestora Monte Bravo Investimentos, Alexandre Mathias.
O segundo problema é que, da forma como os gastos evoluem atualmente, o dinheiro pode, afinal, acabar. “Se nada for feito, já em 2027 as contas estarão estranguladas e o governo não terá recursos para custeios básicos, como aluguel, gasolina ou conta de luz”, afirma Marcus Pestana, diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI), órgão ligado ao Senado. De acordo com a IFI, o país precisa de um mínimo de 0,7% do PIB para arcar com essas operações essenciais. Em poucos anos, porém, essa margem pode cair a 0,2% conforme gastos obrigatórios como aposentadorias, programas sociais e salários crescerem e engolirem o restante. Na prática, bem antes de chegar lá, o país já terá sucumbido, com um apagão generalizado de serviços públicos federais. “Imagine a polícia sem gasolina ou o Exército sem munição”, diz Pestana.
Haddad e a ministra do Planejamento e Orçamento, Simone Tebet, chegaram a anunciar no começo do mês a primeira grande medida de revisão de gastos permitida por Lula — um corte de 25,9 bilhões de reais, a ser gerado por pentes-finos nos principais benefícios sociais a partir do ano que vem, numa lista ainda por ser detalhada. Foi um sinal importante para acalmar os ânimos do mercado financeiro, mas, para muitos especialistas, o valor não apenas está superestimado como é insuficiente para o tamanho do problema. “Alguns programas têm, de fato, muita gordura para corrigir, mas não dá para cortar quase 26 bilhões só com medidas administrativas”, diz Bráulio Borges, pesquisador associado da Fundação Getulio Vargas.
O benefício de prestação continuada, o BPC, que paga um salário mínimo para idosos e deficientes de baixa renda, e o auxílio-doença, programa temporário para pessoas afastadas do trabalho, são alguns itens que tiveram um aumento fora do comum desde a pandemia, quando as regras de inclusão, triagem e perícia foram flexibilizadas. Uma boa limpeza nesses e em outros programas previdenciários poderia economizar cerca de 15 bilhões de reais, de acordo com estimativas feitas por economistas. O mesmo movimento ocorreu com o Bolsa Família, que viu o número de pessoas que moram sozinhas — uma excentricidade para um programa voltado a famílias pobres com filhos pequenos — mais que dobrar depois que as regras também mudaram, ainda em 2021. Recalibrá-lo poderá devolver até 8 bilhões de reais para os cofres públicos.
São nas propostas mais espinhosas, entretanto, e já descartadas por Lula, que estão os maiores potenciais de enxugamento. É o caso da desvinculação do salário mínimo de benefícios sociais como o piso das aposentadorias, as aposentadorias rurais e o BPC, que pagam o piso trabalhista e, juntos, consomem quase metade do orçamento da União. Desde que Lula trouxe de volta os reajustes acima da inflação para o salário mínimo, o crescimento desses benefícios passou a ser ainda mais rápido — nos doze meses até maio, os gastos com a Previdência cresceram 14%. Mexer nesse tabu poderia economizar mais de 20 bilhões de reais ao ano, enquanto outra medida não menos polêmica, o fim dos aumentos automáticos nos orçamentos da saúde e da educação, poderia liberar até 12 bilhões de reais.
Definidos pela Constituição em 1988, os orçamentos das duas áreas têm regras próprias e devem crescer sempre na mesma proporção que a arrecadação. “O arcabouço fiscal definiu que as despesas totais só podem subir até 70% do que crescerem as receitas”, diz Pedro Schneider, economista do Itaú. “Como, então, comportar algo que cresça 100% com as receitas? Não é sustentável.” Completam o cardápio uma revisão na previdência dos militares, que foram poupados na reforma de 2019 e representam, proporcionalmente, o maior déficit do sistema, e a regulamentação dos supersalários do funcionalismo público, que, em muitos casos, ainda ultrapassam o teto de valor mensal de 44 000 reais.
Somadas, as principais reformas abririam um espaço de aproximadamente 87 bilhões nos cenários mais arrojados, o que cobriria com folga os 28,8 bilhões máximos de déficit permitidos pela lei fiscal para 2024 e até mesmo os 60 bilhões de reais de déficit que os economistas acreditam que o governo, de fato, terá. “Quase 95% dos gastos são obrigatórios e difíceis de cortar, então fazer ajuste fiscal no Brasil é conseguir controlar o crescimento deles”, afirma o economista e ex-secretário da Fazenda Marcos Lisboa. “Mas o arcabouço fiscal foi construído com várias contradições que deixam esse controle também difícil.” O único caminho para que o arcabouço não morra em poucos anos, como ocorreu com o seu antecessor, o programa de teto de gastos, é enfrentar com coragem os problemas estruturais. Mas essa é uma briga que, infelizmente, o governo e os políticos não parecem dispostos a encarar.
Publicado em VEJA de 19 de julho de 2024, edição nº 2902