Oriundo da Escola de Chicago, vertente ultraliberal do pensamento econômico, Paulo Guedes serviu de pilar de sustentação do projeto político do presidente Jair Bolsonaro, com suas propostas focadas na eficiência administrativa e na diminuição do Estado. Para atingir os objetivos propostos ainda durante a campanha eleitoral, Guedes deixou clara a urgência de medidas contundentes, como as reformas previdenciária, tributária e administrativa. Sem jamais ter colocado o pé no setor público, ele conseguiu aprovar a reestruturação previdenciária, mas sofreu para articular sua agenda de mudanças, tanto no trato com o Congresso como no convencimento do próprio chefe e seu grupo político, pouco dispostos a enfrentar o corporativismo público. Com isso, acabou ganhando a incômoda alcunha de “ministro da semana que vem”, apelido dado pelos membros do Legislativo em razão dos sucessivos adiamentos da apresentação de suas propostas para a aprovação do Parlamento. No último dia 29, após reunião com parlamentares sobre a reforma tributária, Guedes fez uma espécie de mea-culpa de tantas idas e vindas: “É a política que dita o ritmo das reformas”.
O destino também contribui para tornar a missão ainda mais difícil. Com a chegada abrupta da pandemia do coronavírus, os rígidos princípios liberais de Guedes e de sua equipe foram definitivamente postos em xeque. Ágil na elaboração de medidas que evitaram o caos econômico, com programas como o Auxílio Emergencial e o orçamento extraordinário, a equipe do ministro passou a enfrentar pressões para abrir cada vez mais os cofres em nome da contenção dos efeitos assustadores da crise sanitária. Atualmente, parlamentares e membros do governo, entre ministros e militares, defendem abertamente a flexibilização do teto de gastos em nome de medidas que se contraponham às dificuldades decorrentes da pandemia. E o próprio presidente tem se encantado com a perspectiva de colher dividendos políticos do “orçamento ilimitado”. “Faz parte do DNA dos militares a ideia de um Brasil grande. Eles são preparados para essa visão desenvolvimentista, pouco compatível com o modelo liberal”, explica Maílson da Nóbrega, ex-ministro da Fazenda.
Obviamente, a falta de interesse do Executivo em encampar as propostas de Guedes e as dificuldades decorrentes do relacionamento truncado com o Congresso tiveram impacto no Ministério da Economia. Entre junho e julho, deixaram a pasta nomes importantes como Marcos Troyjo, secretário de Comércio Exterior, e Mansueto Almeida, secretário do Tesouro. A carta-renúncia de Rubem Novaes, presidente do Banco do Brasil, divulgada na semana passada, piorou a situação, pois no documento ele deu a entender que havia perdido a paciência com os questionamentos e diretrizes impostas pelo Palácio do Planalto. Na equipe que permanece, nomes como o do secretário de Privatizações, Salim Mattar, volta e meia são incluídos na lista das próximas baixas, dada a resistência à venda de estatais como Correios e Eletrobras, entre outras. Tarimbado, Mattar costuma responder a essas especulações com o argumento de que as diretrizes seguem firmes e que a linha mestra liberal voltará assim que a pandemia passar. Pode até ser que isso aconteça, mas o jogo não é mais o mesmo de dois anos atrás.
A verdade é que o presidente Bolsonaro já não está mais tão interessado no encolhimento do Estado como no começo de seu governo. Em sua gaveta descansa, há sete meses, a proposta de reforma administrativa, que se propõe a reorganizar as carreiras do serviço público e reduzir os gastos com funcionalismo e estatais (veja Página Aberta na pág. 52). À época em que o projeto foi apresentado, optou-se pelo adiamento por receio de que o texto poderia causar uma convulsão social semelhante à que tomou o Chile em outubro de 2019. Na ocasião, um aumento nas passagens de metrô de Santiago provocou violentos protestos e levou o Exército às ruas e à decretação do estado de emergência. Sem a reforma administrativa no horizonte, optou-se por um pacote de medidas infralegais, medidas provisórias e outros instrumentos que chamassem menos atenção como forma de conter os gastos públicos. Entretanto, tais paliativos não são suficientes, principalmente com a eclosão da Covid-19.
Com os sinais vindos do Palácio do Planalto de que o enxugamento do Estado não é prioridade, o esforço imediato se voltou para buscar formas de financiar o rombo fiscal causado pela pandemia. E aí o liberalismo tomou um duro golpe. A apresentação da primeira parte da reforma tributária mostra que isso virá por meio do aumento da carga de impostos. Ou seja: em vez de cortar as despesas, o governo preferiu aumentar sua receita, penalizando setores da iniciativa privada (especialmente o de serviços). “A chance de uma reforma administrativa abrangente ser aprovada hoje é remota. Os políticos têm um limite a quantos problemas podem responder de uma só vez, e a reforma tributária e a pandemia já são mais do que o Congresso pode aguentar”, diz Sérgio Praça, doutor em ciência política pela USP.
Agora Guedes precisa conseguir resolver uma equação que combine retomada econômica, renda do brasileiro e o projeto de reeleição do governo, sem quebrar o país e as empresas que geram emprego. E a principal variável desse cálculo é o Auxílio Emergencial, que acaba em um mês. Segundo um levantamento feito por Daniel Duque, pesquisador da FGV, o Auxílio Emergencial significa hoje 97% da renda da população mais pobre. O programa mirava sustentar trabalhadores informais, mas acertou em uma população que o próprio Guedes define como “invisível”. Sem o benefício assistencial e uma política potente de emprego, a tendência desse grupo é voltar à indigência. A manutenção do benefício, entretanto, é impagável. Seriam mais de 600 bilhões de reais ao ano, caso se tornasse uma política permanente.
Em meio à crise, cresce a pressão pela flexibilização do teto de gastos. Além das medidas assistencialistas, incluem-se entre as demandas investimentos em obras de infraestrutura e geração de empregos, como querem os ministros do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, e da Casa Civil, Walter Braga Netto. O foco, evidentemente, é a reeleição de Bolsonaro em 2022. “Usar a pandemia para criar despesas obrigatórias agravará um quadro já difícil. A crise sanitária não deveria servir de pretexto para mudar as diretrizes econômicas”, avalia Marcos Mendes, professor do Insper e um dos idealizadores do teto de gastos. Ninguém imaginava que o trabalho de Paulo Guedes seria fácil. Hoje, além de enfrentar as previsíveis resistências, o ministro convive com o dilema de adaptar suas convicções a uma realidade nascida de um vírus mortífero, mas que mira a eleição daqui a dois anos. Seu sucesso nesse desafio é crucial para o futuro do país.
Com reportagem de Diego Gimenes
Publicado em VEJA de 5 de agosto de 2020, edição nº 2698