A catedral de Colônia, na Alemanha, começou a ser construída em 1248 e só foi finalizada em 1880. A Basílica da Sagrada Família, em Barcelona, teve seu início dois anos depois da conclusão da igreja germânica, em 1882, e até hoje não foi concluída. Até o Metropolitan Museum of Art, de Nova York, tem cantos que estão por terminar desde o começo do século XX. Reformas demoradas, e até inacabadas, são um clássico na história da construção e encontram paralelos no campo da política.
No Brasil, as pendências deixadas pelo caminho são notáveis. A reforma tributária, que acaba de ser votada — mas, note-se, ainda não foi concluída —, vem se arrastando há 35 anos. Agora outra dessas revisões históricas pode estar prestes a andar: a administrativa. Desde 1938 o Brasil vem fazendo reformas na máquina pública mas nunca de forma completa. A última foi realizada em 1995. A Câmara tem um plano de reforma administrativa pronto desde 2021. O presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), anunciou que quer pôr essa medida na pauta de 2024.
A tributária e a administrativa podem ser vistas como partes complementares de um pacotaço que promete colocar o Brasil no século XXI. A primeira se propõe a alterar o modo como o Estado recolhe riqueza da sociedade. A segunda vai na direção de reformatar o retorno dessa arrecadação aos contribuintes. Pretende mexer com a estrutura de um funcionalismo ineficiente, implementando métodos de avaliação e metas de produtividade. Almeja permitir o remanejamento de servidores e acabar com os “supersalários”, aqueles acima de 40 000 reais, que custam aos cofres públicos mais de 3,9 bilhões de reais por ano.
A pretensão de reforma, com foco em eficiência e redução de despesas, encontra pela frente um governo que não está interessado em diminuir gastos, mas em expandi-los. “Há pontos de convergência entre o Congresso e o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, como limitação de quantidade de carreiras e fim dos supersalários, mas o resto do governo não tem disposição de ver esse assunto avançar”, afirma Sergio Vale, economista-chefe da consultoria MB Associados.
A mais recente evidência do ímpeto gastador do governo é uma nova política industrial, com metas para o desenvolvimento do setor até 2033, lançada com pompa pelo presidente Lula e pelo vice-presidente e ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, Geraldo Alckmin. Contando com financiamento público de 300 bilhões de reais, o plano busca reverter o que o governo chama de “desindustrialização precoce do país”. Para isso, alimentará o setor com linhas de crédito especiais, recursos não reembolsáveis, ações regulatórias, reserva de mercado e uma política de obras e compras públicas. Em suma, uma fórmula reciclada de tentativas parecidas que, no passado, geraram gastos, distorções e naufragaram.
O mercado reagiu de imediato com temor de mais expansão fiscal num quadro já deficitário. A Bolsa caiu, o dólar subiu e a curva de juros operou em alta ante a perspectiva da volta de uma política que lembra o BNDES dos “campeões nacionais”, que concedia crédito subsidiado a empresas para que elas “liderassem” o desenvolvimento do país. “O reconhecimento de que os recursos são finitos é algo que ainda engatinha no Brasil, então se faz política pública pensando muito no mérito para o setor e pouco no conjunto da sociedade”, diz Livio Ribeiro, pesquisador do FGV Ibre e sócio da BRCG Consultoria.
A proposta da reforma administrativa pretende atacar o gasto público por outro lado. O Estado brasileiro é custoso por ser ineficiente. A burocracia conta com cerca de 11 milhões de servidores públicos, número que representa em torno de 12% dos trabalhadores do país. A proporção de vínculos públicos é menor que a de países como Argentina (19%), Uruguai (17%), Chile (13%) e Estados Unidos (13%). Mas o Brasil gasta 13% do PIB com o funcionalismo, o que o coloca entre os seis países do mundo que mais despendem com pagamento de pessoal. A principal explicação é a vantagem salarial dos servidores em relação ao que oferece a iniciativa privada — ganha-se, em média, até cinco vezes mais no serviço público.
Dinheiro para pagar isso o Brasil até tem, já que é um dos países que mais arrecadam com impostos, mas de nada vale se o retorno é baixo e a alocação de recursos é ruim. Em 2022, a carga tributária do país atingiu 34% do PIB. É uma das mais altas do mundo. Mas não a maior. Quem lidera o ranking é a Dinamarca, com um fardo de impostos que corresponde a 45% do PIB, seguida pela Finlândia (44%), Bélgica (43%), França (43%) e Itália (42%). O Brasil, das trinta economias mais onerosas ao contribuinte, está entre as que menos entregam em retorno. Isso é medido numa comparação entre carga tributária e IDH, o índice de desenvolvimento humano. O IDH brasileiro é o 87º do mundo.
A reforma administrativa, como desenhada, mira justamente essa ineficiência do Estado. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), afirmou durante o evento Brazil Economic Forum Zurich, realizado por VEJA em parceria com o Lide, na semana passada, que o Congresso deve esmiuçar neste ano a alocação de recursos, mirando uma agenda fiscalista. “Além de uma discussão pura e simplesmente de uma reforma administrativa, em relação aos servidores, faremos uma discussão muito ampla sobre quais são as nossas prioridades”, disse Pacheco.
A proposta de modernização do funcionalismo encontra resistências. Auditores da Receita Federal estão em greve há mais de dois meses. Os profissionais cobram melhorias de ganhos e nas condições de trabalho. Os servidores do Banco Central também estão paralisados. Eles reivindicam avanços na carreira, como a equiparação com categorias semelhantes, mudanças de cargos e exigência de nível superior para posto técnico.
A mobilização encontra amparo no governo. No fim de 2023, a ministra da Gestão, Esther Dweck, afirmou que a reforma não aborda os gargalos reais do funcionalismo público. Apesar das críticas, sua pasta baixou uma instrução normativa que troca o arcaico controle de presença por meio do ponto pela produtividade — agora importa a entrega do servidor. Embora de efeito restrito, a medida abre caminho para uma das propostas defendidas pela reforma administrativa: um sistema de avaliação de desempenho por metas. “O governo tem essa postura de resistência porque uma parte enorme do seu eleitorado é servidor público”, disse o ex-diretor do BC Alexandre Schwartsman em entrevista ao programa VEJA Mercado.
Em recente entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, Haddad admitiu a necessidade de reformar o funcionalismo, mas disse que a mudança deveria começar “pelo andar de cima”, citando o fim dos supersalários. O fato é: a reforma não pode mais esperar. Mãos à obra.
Publicado em VEJA de 26 de janeiro de 2024, edição nº 2877