Desde que assumiu o comando do Banco Central, em fevereiro de 2019, o economista Roberto Campos Neto, de 51 anos, experimenta agora talvez o cenário mais desafiador de sua gestão, com a alta da inflação em meio à retração da atividade econômica em um cenário de incertezas decorrentes da pandemia. Nesse contexto, o Comitê de Política Monetária (Copom), presidido por ele, decidiu na quarta-feira 5 aumentar a taxa básica de juros (Selic) de 2,75% ao ano para 3,5%, o segundo acréscimo consecutivo — o anterior foi em março, após seis meses com a taxa em 2%, a menor da história.
Embora o controle da moeda seja uma responsabilidade decisiva para os rumos da economia, está longe de ser hoje a única contribuição de Campos Neto para o momento delicado que vive o país. Nos últimos meses, ele ganhou um protagonismo inédito ao se tornar um conselheiro assíduo de Jair Bolsonaro, articulador da agenda liberal no Congresso, defensor intransigente da vacinação, fiador da (pouca) credibilidade que o Brasil ainda tem no mundo e um dos principais responsáveis pela recente guinada no discurso ambiental do governo.
Paradoxalmente, essa influência aumentou no momento em que ganhou independência do governo, após a aprovação da autonomia do Banco Central, sancionada por Bolsonaro em fevereiro deste ano — a medida implanta mandato de quatro anos para o presidente e diretores e desvincula a instituição do Ministério da Economia. No fim de abril, Campos Neto se tornou o primeiro presidente nesse formato do BC, instituição idealizada pelo avô Roberto Campos, o mais brilhante e ferrenho defensor do liberalismo na economia. Sem poder ser demitido e com possibilidade de recondução, ele pode ficar até 2028 e se tornar o mais longevo no posto — o recordista é Henrique Meirelles, que permaneceu oito anos no cargo, no governo de Luiz Inácio Lula da Silva.
Se o papel de Campos Neto é importante na política monetária, pode-se dizer o mesmo de sua atuação junto a Bolsonaro, uma vez que um dos problemas do governo é a qualidade duvidosa, para dizer o mínimo, de alguns conselheiros que cercam o presidente, como o deputado Osmar Terra (MDB-RS) e o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ), só para ficar em duas pessoas que frequentaram o noticiário recente pela influência negativa que tiveram em um tema central como o combate à pandemia.
A participação de Campos Neto em questões espinhosas de outras áreas tem uma explicação: ela, evidentemente, ajuda a própria economia. Interlocutores do mercado atribuem a ele o trabalho de convencer Bolsonaro a recuar na narrativa de antagonista ambiental do mundo, o que levou ao discurso correto do presidente na Cúpula do Clima em abril. De forma pragmática, Campos Neto transmitiu ao presidente o recado que ouviu de investidores americanos e europeus: a insistência no papel de vilão só levaria o país e as empresas daqui a terem mais dificuldade de acesso a crédito e ao mercado internacional. No meio do ano passado, quando um grupo de fundos que administram nada menos que 3 trilhões de dólares lançou uma carta aberta cobrando o Brasil de “compromisso claro” com a “eliminação do desmatamento” e a “proteção dos direitos indígenas”, foi a Campos Neto que o vice-presidente Hamilton Mourão, presidente do Conselho da Amazônia, recorreu para aplainar os ânimos dos investidores — muitos dos quais ele já conhecia da sua carreira no mercado privado. “Era uma questão pragmática: mais desmatamento, menos dinheiro. Ele foi o primeiro a entender que o Brasil precisava entrar no jogo da sustentabilidade”, disse, sob reserva, um político e empresário.
Com zero conhecimento de economia, como já explicitou diversas vezes desde a campanha eleitoral, Bolsonaro gostou do jeito simples e pouco tecnocrata de Campos Neto defender as suas ideias. Conforme a agenda oficial, foram pelo menos nove encontros entre ele e o presidente neste ano. O de maior destaque foi o da negociação para a compra de vacinas contra Covid-19 com os executivos da Pfizer, que estava parada na gaveta do então ministro da Saúde, Eduardo Pazuello. O fechamento do acordo foi atribuído à influência do presidente do BC e do ministro da Economia, Paulo Guedes, que na foto oficial da reunião aparecem ao lado de Bolsonaro. Campos Neto alertava desde o meio de 2020 sobre o fato de que a vacinação era a única forma de agilizar a retomada econômica. Segundo o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, ele era o único do governo que não negava a gravidade da crise e telefonava de “duas a três vezes por semana” para estudar os impactos da doença nos outros países.
O seu estilo conciliador e discreto também o levou a conquistar aliados no Congresso. Tanto que em março deste ano acabou sendo acionado para conversar com os parlamentares com o objetivo de convencê-los de que a desidratação da PEC Emergencial seria muito malvista pelo mercado. “É uma pessoa dinâmica e acessível”, afirma o senador Plínio Valério (PSDB-AM), autor da lei que conferiu autonomia ao BC. A aprovação do projeto, aliás, é creditada como um dos trunfos de Campos Neto. “Desde o início do governo, ele se encontrava semanalmente com deputados e senadores, foi incansável”, explica Salim Mattar, ex-secretário de Desestatização do governo Bolsonaro.
Não é à toa que toda vez que o futuro de Guedes no cargo é colocado em dúvida, Campos Neto passa a ser especulado como o seu sucessor. O presidente do BC, no entanto, diz que é “100%” alinhado às ideias do ministro, que o indicou ao comando no BC. “Ele jamais aceitaria. Entende que seu papel envolve o Banco Central e, além do mais, ele e o ministro são fraternais amigos”, diz um auxiliar de Guedes. Os mais próximos costumam citar uma reunião entre Bolsonaro e os “ministros da ala técnica” após a saída de Sergio Moro da Justiça, quando o presidente do BC sugeriu ao presidente que desse respaldo ao Posto Ipiranga, como Guedes ficou conhecido. “O homem que decide a economia no Brasil é um só: chama-se Paulo Guedes”, disse o presidente na saída.
A relação entre o ministro e Campos Neto é antiga. Guedes o conhece desde criança por intermédio do avô Roberto Campos, falecido em 2001. Dados os laços familiares, é comum a brincadeira entre agentes de mercado de que Campos Neto é “liberal desde o berço”. Antes de assumir o BC, o economista, que tem especialização pela Universidade da Califórnia, fez uma carreira de dezoito anos no Santander, chegando a ser tesoureiro global do banco para as Américas. A quem o questiona sobre o dólar alto, costuma dizer ironicamente que “não é mais operador do mercado de câmbio”.
Além dos bons conselhos a Bolsonaro, Campos Neto tem o que contar como presidente do BC. Entre os seus feitos estão a criação do Pix, que já atingiu mais de 206 milhões de chaves cadastradas, e garantir liquidez aos mercados no ano passado, por meio do projeto que garantiu a operacionalização do Orçamento de Guerra. Pelo fato de o Brasil ter tido uma retração econômica menor do que a esperada para 2020, foi eleito o banqueiro central do ano pela revista britânica The Banker. Nas últimas semanas, anda debruçado sobre um projeto para criar uma criptomoeda oficial do Brasil — algo que hoje só existe na China. “Ele tem uma pegada bem tecnológica e montou uma equipe que entende de inovações”, conta o deputado Paulo Ganime (Novo-RJ), presidente da Frente Parlamentar de Bioeconomia da Câmara.
A exposição também rende críticas, principalmente o seu envolvimento cada vez maior com Bolsonaro no momento em que o BC ganhou autonomia. Um episódio que gerou bastante controvérsia foi a sua participação em um jantar de apoio de empresários ao presidente em abril. “Ele não é ministro e agora é independente do governo”, disse Sérgio Praça, cientista político da FGV. “Articulação política gera risco de desgaste”, faz coro Sergio Goldenstein, ex-diretor do BC.
A despeito de críticas desse tipo, no exterior é comum que os ocupantes do cargo adquiram uma influência que vai além do campo monetário. Exemplo maior disso foi Alan Greenspan, lendário chefão do BC dos Estados Unidos entre 1987 e 2006. No Brasil, antes mesmo da decisão sobre a independência da instituição, o histórico trágico de instabilidade da moeda, inflação descontrolada e déficit fiscal fez com que os mandatários da instituição sempre fossem influentes — vide Henrique Meirelles, Armínio Fraga e Pedro Malan. Campos Neto é o exemplo mais recente dessa tradição.
Publicado em VEJA de 12 de maio de 2021, edição nº 2737