Setores beneficiados por isenções fiscais impõem desafio a Haddad
O governo estima que pode recuperar 150 de bilhões de reais com uma revisão geral de benefícios no pagamento de impostos. Mas vai encontrar resistências
Na busca para cumprir a sua promessa de ter responsabilidade fiscal, o governo escolheu o caminho difícil. Em vez de cortar gastos e reestruturar a máquina pública, adotou a linha de aumentar investimentos e atender logo de cara às promessas de campanha de conceder mais benefícios sociais. Para compensar o escoamento desses recursos, pretende aumentar a arrecadação de impostos. “Nós estamos tomando medidas difíceis, impopulares, sobretudo por causa do populismo praticado pelo governo anterior”, declarou o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, em evento do Senado, no fim de abril.
Além de creditar as dificuldades que terá pela frente às contas herdadas da última gestão, a qual acusa de ter maquiado os resultados primários ao dar calote em precatórios e tomado dinheiro dos governadores, Haddad se referia aos seus planos, que vêm revelando aos poucos, para garantir a viabilidade do novo marco fiscal proposto por sua equipe. Segundo o governo, será preciso trazer cerca de 150 bilhões de reais de receitas adicionais para poder cumprir a regra. Dias antes, em uma entrevista, o ministro afirmou que esses recursos virão com a abertura da “caixa-preta das renúncias fiscais”, e que o ministério faria, junto com a Advocacia-Geral da União, uma revisão geral, “CNPJ por CNPJ”, de isenções e benefícios no pagamento de impostos.
Pelas suas contas, o governo abre mão anualmente de 600 bilhões de reais, dos quais cerca de metade seria legítima. Assim, ele precisaria de apenas metade do restante para angariar os 150 bilhões de reais que necessita para fechar as contas. Ao adotar esse raciocínio, o ministro faz a sua missão parecer mais fácil do que ela, de fato, é. Não por faltarem setores privilegiados. Mas por que enfrentará fortes resistências para cobrar mais deles.
Entre os quinze itens que mais pesam nos benefícios fiscais previstos pelo governo a ser concedidos em 2024, aparecem vantagens para seis setores: agricultura e agroindústria, medicamentos e produtos médicos, automóveis, informática, habitação e até embarcações e aeronaves. Cada um deles responde por, no mínimo, 6,5 bilhões de reais em isenções tributárias. É mais que o dobro do custo adicional para o governo com a medida, anunciada na segunda-feira 1º, de ampliar a isenção de imposto de renda para quem ganha até dois salários mínimos — uma perda estimada em 3,2 bilhões de reais pelo Fisco.
Disparado em primeiro lugar entre os setores com mais benefícios aparece o agrário — que contará com 57,1 bilhões de reais em 2024. Só ficam à frente desse setor os 118,8 bilhões de reais não coletados de participantes do regime tributário Simples Nacional, voltado a pequenas empresas de diversos ramos de atividade. E essa conta da agricultura nem considera as vantagens totais para o setor. Inclui o crédito rural, como o Plano Safra, mas não a isenção de imposto de renda para os títulos de crédito agrário, as chamadas LCAs, uma forma de investimento voltada a financiar o setor. “O agro não paga contribuição previdenciária. É um setor que tem maior informalidade, e conta com crédito agrícola. Então, paga menos taxas que a indústria e ainda acaba recebendo juros subsidiados”, analisa o economista Manoel Pires, ex-secretário de política econômica do Ministério da Fazenda. “Se o governo vai conseguir atingir a sua meta é muito difícil dizer. Mas, muito provavelmente, vai sair dessa discussão arrecadando bem mais, a um baixo custo econômico.”
De fato, os economistas costumam concluir que o impacto para a sociedade é menor quando se cortam renúncias fiscais e desonerações do que promover o aumento de impostos para todos, majorando alíquotas de PIS/Cofins, IR ou IPI, por exemplo. A questão é se o governo conseguirá impor essa agenda, já que experiências passadas não foram bem-sucedidas e muitos dos setores mais beneficiados contam com grande poder de articulação em Brasília. É difícil imaginar que o agronegócio, estratégico para o país e com uma atuante bancada no Congresso, será afetado. O único outro segmento beneficiado acima dos 10 bilhões de reais ao ano é o de medicamentos, produtos farmacêuticos e equipamentos médicos, com o qual mexer também é politicamente delicado. A justificativa principal para manter os benefícios para a área é incentivar um menor preço desses produtos para o consumidor.
Entre os maiores, o terceiro setor mais favorecido é o automotivo, que, além de ser diretamente beneficiado em 9,3 bilhões de reais por ano, ainda responde por parte significativa dos 16,6 bilhões de reais voltados para o desenvolvimento regional, como as vantagens amealhadas na instalação de suas fábricas em cada localidade. Dessa forma, é outro segmento que dificilmente deve entrar no alvo de Haddad, uma vez que é considerado estratégico para o atual governo. O mais provável será aumentar ganhos tributários. O vice-presidente e ministro do Desenvolvimento, Geraldo Alckmin, tem garantido a representantes da área que, dentro do seu plano de reindustrialização do país, está um programa de incentivo à renovação da frota nacional. “A indústria automobilística voltou a ser um item prioritário desse governo”, afirma Marcos Mendes, ex-assessor especial da Fazenda e um dos principais estudiosos sobre benefícios fiscais do país. “Eu realmente não consigo enxergar nenhum item de valor significativo que o governo possa reduzir.”
Segundo as suas contas — menos otimistas do que as de Haddad —, dois terços dos 600 bilhões de reais são praticamente impossíveis de ser alterados, incluindo Zona Franca de Manaus, Simples e políticas de desenvolvimento regional. Mesmo os cortes de isenções setoriais são de difícil aprovação. “É uma agenda superpositiva, porque esses benefícios distorcem a economia e acabam redirecionando investimentos a áreas menos produtivas. Mas é muito difícil de ser executada”, diz Mendes.
Um exemplo bastante ilustrativo envolve a indústria química. Por quatro vezes, o governo buscou acabar com o benefício a esse setor. Os ministros Paulo Guedes, Henrique Meirelles e, por duas vezes, Eduardo Guardia tentaram. Mas todas as vezes o Congresso vetou as mudanças. Outra esperança surgiu depois da aprovação pelo governo Jair Bolsonaro da PEC Emergencial, em 2021. Ela incluía a obrigatoriedade da criação, em até seis meses, de um plano para reduzir os benefícios tributários de 10% para 2% do PIB. Um projeto de lei foi enviado ao Congresso e, logo, esquecido.
Com tantas dificuldades, é de esperar que Haddad enfrente uma tarefa hercúlea para levantar valores significativos. Afinal, quem argumenta que a sociedade e as empresas já pagam impostos em excesso no Brasil estará correto. Mas, se o ministro tiver sucesso em diminuir as distorções — e brechas — que fazem setores serem mais beneficiados que outros, a economia como um todo poderá ficar mais saudável.
Publicado em VEJA de 10 de maio de 2023, edição nº 2840