Silva e Luna detalha a VEJA como Bolsonaro tentou intervir na Petrobras
Depois de uma demissão constrangedora, o general revela em entrevista exclusiva o histórico de pressões do presidente da República na empresa
Os últimos dias do general Joaquim Silva e Luna no posto de presidente da Petrobras têm transcorrido em um escritório a algumas quadras de distância do monumental edifício em estilo brutalista que serve de sede da empresa na Avenida Chile, no centro do Rio de Janeiro. Uma grande reforma, que Silva e Luna não verá concluída, provocou a mudança para um segundo prédio da companhia nos arredores. Foi lá, em uma sala do último andar com vista para a Baía de Guanabara e para a sede histórica, que o general recém-demitido pelo presidente Jair Bolsonaro recebeu a reportagem de VEJA para uma entrevista emocionada e em tom de desabafo na terça-feira 29. Um dia antes, ele havia atendido a um telefonema do ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, quando se preparava para ir a Brasília, e recebido uma notícia que já esperava havia dias. A surpresa, no caso, estava nos detalhes de como se daria a operação para seu afastamento do cargo. Seu nome seria retirado da ata para a renovação do conselho de administração da empresa, o que na prática significa que ele não ocupará mais a presidência da petroleira. Tal ritual burocrático deve acontecer no dia 13 de abril. Até lá, ele segue no posto.
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Desde o escândalo popularizado como petrolão, que marcou as gestões dos petistas Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, a Petrobras passou por muitas mudanças. Uma série de medidas foram adotadas em um rígido processo de saneamento e de implementação de normas que tem por objetivo evitar novos malfeitos prejudiciais aos acionistas minoritários privados e ao próprio governo como acionista majoritário. Entre elas está a responsabilização judicial dos dirigentes da empresa caso adotem uma gestão temerária. Ao tomar posse em abril do ano passado, Silva e Luna assumiu o cargo em meio a um cenário movediço, em que teria de se equilibrar entre as fortes pressões do acionista principal representado pela figura sentada no Palácio do Planalto, em Brasília, e o interesse dos minoritários e da própria companhia. No currículo, carregava uma elogiada gestão à frente da Itaipu Binacional e, antes disso, reputada passagem pelo Ministério da Defesa no governo de Michel Temer. Sua missão era substituir Roberto Castello Branco, que havia desidratado no posto depois de refutar as tentativas de ingerência de Bolsonaro na empresa. Agora, deixa o cargo em uma situação praticamente idêntica à do antecessor.
Desde o princípio, Silva e Luna sabia que o desafio era complexo e cheio de armadilhas. No entanto, sua maior frustração não diz respeito às pressões ou dificuldades na presidência de um colosso de regime misto que vale 90 bilhões de dólares, mas a seu desfecho, com um processo de fritura que considera desrespeitoso a sua biografia de militar e de gestor. E quando fala sobre isso seus olhos se enchem de lágrimas e a voz lhe foge. “Tem coisas para mim que são sagradas, e a mais importante é minha biografia. Quero minha reputação íntegra, para quem quiser olhar. Não aceito que ninguém jogue pedra nisso aqui e, por consequência, na própria empresa”, disse Silva e Luna a VEJA, no momento mais emocionado de sua entrevista. O general também se sentiu ferido na maneira como foi dispensado da função pelo presidente da República, que o convidou para o cargo. “A atitude poderia ter sido diferente. Que tivesse me sido prestado um contato telefônico dizendo: ‘Olha, precisamos do seu cargo’. É coisa simples”, afirmou. “Poderia ter sido de forma mais respeitosa”, avalia. Pernambucano da cidade de Barreiros, o militar de 72 anos revelou que em sua gestão sofreu pressões para indicar diretores na empresa e, apesar de garantir que não carrega mágoa, mandou recados claros. “Não vendo minha alma a ninguém, não coloco meus valores em xeque.”
No começo do mês, Bolsonaro afirmou que a Petrobras “cometia um crime” contra a população e reclamou do último aumento do preço dos combustíveis, afirmando que “todo mundo no governo pode ser substituído”. Foi o primeiro sinal de que a relação com Silva e Luna escalava em tensão. Em suas declarações públicas e lives de quinta-feira, o presidente atacava a gestão da estatal. Entre os vitupérios que lhe são típicos, Bolsonaro chegou, inclusive, a colocar em discussão o salário do general à frente da companhia. “O diretor ganha 110 000 por mês. O presidente, mais de 200 000 por mês e, no final do ano, ainda tem alguns salários de bonificação. Os caras têm que trabalhar”, disse. Com disciplina militar, Silva e Luna resistiu às agressões, que cresciam em intensidade. Mas com a incursão tresloucada de Vladimir Putin na Ucrânia, e o consequente aumento no preço internacional do petróleo para próximo de 140 dólares, o que era ruim ficou péssimo. Em uma evidente provocação a Silva e Luna, Bolsonaro indicou o engenheiro e presidente do Flamengo, Rodolfo Landim, para o posto de presidente do conselho de administração da empresa no lugar do almirante Eduardo Bacelar. Ex-presidente da BR Distribuidora e ex-braço direito — e depois inimigo figadal — do empresário Eike Batista em suas empreitadas pelo setor de óleo e gás, Landim já havia cruzado o caminho de Silva e Luna anteriormente. Em setembro do ano passado, o engenheiro o procurou para uma conversa e sugeriu que, se estivesse à frente de uma diretoria da petroleira, conseguiria baixar os preços dos combustíveis. Aproveitou também para deixar explícita sua proximidade com o presidente da República. Silva e Luna declinou da sugestão.
Sob o comando do general, o preço da gasolina subiu 32% e o do diesel, 56%. Ainda assim, mesmo com os aumentos, houve um cuidado de se equilibrar a brutal volatilidade internacional no período, com a companhia absorvendo parte dos custos. Assim como havia feito Castello Branco, o general resistiu a pressões que vinham de congressistas e membros do governo para que rompesse a diretriz de alinhamento ao mercado global e segurasse os preços. Com isso, ganhou o respeito do mercado financeiro, que temia ver um “testa de ferro” do presidente à frente da maior empresa de capital misto do país. Atender aos desejos do governo e seus aliados, além da possibilidade de render complicações legais para os executivos da empresa, poderia causar desabastecimento de combustíveis no Brasil, uma vez que preços muito abaixo do cenário no exterior desestimulam a importação de gasolina e diesel refinado por outros competidores e provocam uma diminuição da oferta interna.
Em 68 anos de história, repete-se na Petrobras um padrão relativo a seus presidentes. Uma rápida análise na lista de 39 nomes que já passaram pela empresa mostra que, quanto mais complicada a situação econômica e política do governo, maior a dança das cadeiras na empresa — e, consequentemente, as tentativas de interferência. Foi assim durante as gestões de José Sarney e de Fernando Collor de Mello (os campeões em mudanças, com cinco presidentes nos mandatos), e também nas de João Goulart e de Dilma Rousseff (quatro e três presidentes, respectivamente). Infelizmente, o modelo se repete sob Bolsonaro, que apontará o terceiro executivo chefe da companhia em pouco mais de três anos de governo. É nessa condição que assume o posto o economista e consultor Adriano Pires, sócio-diretor do Centro Brasileiro de Infraestrutura (CBIE), a partir do dia 13 de abril.
Aos 64 anos, Pires chega à Petrobras com o aval do Centrão e do mercado financeiro. O bom trânsito com congressistas na estruturação de propostas para o setor de óleo e gás fez com que seu nome fosse endossado pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e pelo ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira. “Lira foi a porta de entrada para Pires. Nogueira foi o carimbador”, diz uma fonte próxima ao consultor. “Ele é jeitoso para falar. O general não falava e peitava o governo. Ele fez uma excelente gestão, diga-se de passagem, mas era difícil de conversar”, completa a mesma fonte. Se do ponto de vista político o problema parece resolvido, a sucessão ainda preocupa os acionistas minoritários da empresa, que preferiam manter Silva e Luna no seu comando. “Fico triste com tantas trocas de presidente da empresa. Isso não é boa prática de gestão e gera insegurança e desvio de atenção nos funcionários”, afirma Marcelo Mesquita, representante dos minoritários no conselho de administração.
Economista formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em 1980, e com doutorado em economia industrial pela Universidade Paris XIII, Pires se orgulha de dizer que acumula quatro décadas de experiência no setor de energia. Reconhecido por seu trabalho no âmbito acadêmico e como consultor de grandes empresas, agora terá o maior desafio de sua carreira, já que nunca dirigiu uma grande companhia. Crítico contumaz dos governos do PT, sempre defendeu uma política de livre mercado no setor de energia. Além disso, em diversas entrevistas a VEJA, mostrou-se refratário ao intervencionismo na empresa. “Espero e torço para que Bolsonaro resista à tentação de intervir na Petrobras. Esse seria o pior caminho”, disse no início de março, exatamente no começo do processo de fritura de Silva e Luna. “O congelamento dos preços é a pior política possível. O resultado imediato é gerar um desabastecimento dos combustíveis.”
Com tal histórico de declarações, o mercado se tranquilizou quando seu nome foi revelado como substituto de Silva e Luna, em informação divulgada por VEJA na tarde da segunda-feira 28. No pregão do dia seguinte, as ações da Petrobras subiram 2,22%, puxando o Ibovespa para cima. A expectativa é que Pires não tomará medidas radicais e antiliberais na condução da empresa, como alterar a política de preços de paridade de importação, adotada durante a presidência de Pedro Parente em 2016 e mantida por seus três sucessores. “O Adriano é um profissional da área. Tem uma biografia a zelar e um histórico de posicionamentos consistentes”, diz Castello Branco, o antecessor de Silva e Luna. “Mas só o tempo vai dizer o que vai acontecer.” Também os representantes dos competidores da Petrobras na venda de combustíveis refinados apostam numa postura responsável. “Pires é um profissional atuante no mercado. Ele participa ativamente dos debates dos principais temas de energia no setor de óleo e gás. Sempre defendeu um mercado aberto, alinhado com a paridade de importação. Ele tem muita credibilidade”, explica Sergio Araujo, presidente da Associação Brasileira dos Importadores de Combustíveis (Abicom).
Se a política de preços deve ser mantida, a dúvida é como Pires poderá atender aos anseios políticos que o levaram ao cargo. Congressistas do Centrão alinhados com o Planalto esperam a colaboração do economista em pautas que possam resultar em diminuição dos atuais níveis de inflação no país. Parlamentares aprovaram recentemente a criação de um fundo de estabilização de preços que seria administrado com recursos de dividendos recebidos da empresa pela União. Pires, provavelmente, será requisitado para ajudar na formulação desse projeto.
Enquanto aguarda a aprovação do seu nome, o novo presidente pode se beneficiar de uma mudança conjuntural capaz de facilitar seu trabalho. Nos últimos dias, o preço do petróleo registrou queda. O lockdown em algumas grandes cidades chinesas ameaçadas pela volta de casos de Covid-19, como Xangai, fez com que a cotação da commodity oscilasse para baixo com a possibilidade de uma demanda menor de petróleo no mundo. Se a tendência for confirmada, e combinada com o arrefecimento da guerra entre a Rússia e a Ucrânia, além do declínio do dólar, o petróleo entrará em um ciclo de desvalorização. Tal cenário desanuviado favorece Bolsonaro, que poderá incorporar ao seu discurso eleitoral o mérito de ter agido para derrubar o preço dos combustíveis no Brasil. E, mais uma vez, a Petrobras será usada para alimentar os interesses de políticos populistas, uma realidade recorrente independentemente do matiz ideológico do governo. “A Petrobras nasceu em meio a uma estratégia política e econômica de forte cunho estatista e nacionalista”, diz Gilberto Braga, professor da escola de negócios Ibmec, do Rio de Janeiro. “Desde então, as decisões da empresa têm relevância eleitoral, pois os recursos de que dispõe costumam ser decisivos para sustentar as localidades onde atua. Daí tanta interferência dentro da companhia.” É algo que, em quase sete décadas de história, já deveria ter acabado. Mas a tumultuada destituição de Silva e Luna prova que essa ainda é uma realidade distante.
Publicado em VEJA de 6 de abril de 2022, edição nº 2783