Seria equivocado imaginar que entre os objetivos de brasileiros adultos, em especial os casados, tenha sido integralmente descartada a ideia de possuir um imóvel para chamar de seu. Dispor de uma residência fixa e quitada dá segurança para que outros planos sejam traçados — com os pés no presente e os olhos no futuro. Essa meta, no entanto, só está ao alcance de uma quantidade cada vez menor de pessoas que vivem nos melhores bairros das grandes metrópoles do país. Imóveis acessíveis ficam restritos a regiões afastadas e até a periferias propriamente ditas. Contudo, esse teimoso cenário pode começar a ser, parcialmente ao menos, sacudido. Três grandes construtoras do país estão dando uma guinada que deverá permitir que muitas pessoas tenham condição de viver nas melhores áreas dos grandes centros urbanos — desde que abandonem o sonho da casa própria. Vitacon, MRV e Cyrela entendem que, nos próximos anos, as cidades de ponta concentrarão residências temporárias. Encontra-se por trás desse movimento uma conjuntura de fatores que passa pela capacidade das famílias de financiar novos imóveis, pela queda dos níveis da poupança e pelo aumento do valor de mercado das unidades. Assim, as empresas não querem mais vender uma casa ou um apartamento — desejam fornecer um serviço de habitação.
Quem é do mercado garante: o setor da construção será um dos impulsionadores do crescimento em 2020. A taxa básica de juros (Selic) está no patamar de 4,5% ao ano, o menor da história, o que barateia o crédito imobiliário, tanto para o comprador quanto para o construtor. A expectativa é que, nos próximos cinco anos, os lançamentos de novas unidades em São Paulo passem de 8 bilhões de reais anuais para 30 bilhões de reais, o recorde alcançado em 2007. Ainda falta que vinguem alguns fatores, como a volta do emprego e do poder de compra e uma retomada mais vigorosa do PIB. Quem empreende, no entanto, não quer entrar no mar depois de a maré baixar — daí as apostas do momento.
7,8 milhões de residências é o déficit habitacional do país
Um problema fundamental das incorporadoras — financiar prédios inteiros, o que custa, claro, milhões de reais — está sendo resolvido com a adaptação de uma estratégia oriunda do mercado corporativo ao residencial. As companhias agora vendem unidades a investidores — e não importa se são grandes escritórios com bilhões de reais sob sua administração ou pessoas físicas. Esses compradores adquirem as unidades mas as deixam sob a gestão das próprias construtoras. “Fizemos um lançamento em Moema no fim do ano passado. Em uma noite, vendemos o prédio inteiro”, gaba-se Alexandre Lafer, CEO da Vitacon, que lançou sua plataforma em maio. “Entendemos que o momento é de oferecer os imóveis como serviço”, afirma ele.
Os sistemas de aluguel que as incorporadoras estão desenvolvendo se assemelham a outros serviços de compartilhamento de residências, como o Airbnb. Entretanto, em vez de alugar do dono de determinado imóvel, o interessado loca direto da empresa. Tudo está incluído — manutenção, limpeza, contas como internet, luz e água, e toda a miríade de itens que compõem o orçamento residencial. São prédios inteiros que entram nesse sistema, e não somente uma ou outra habitação. Depois da Vitacon, a MRV, comandada por Rafael Menin, lançou o serviço em outubro. A Cyrela, de Elie Horn, anunciou em novembro que fará o mesmo. Num mundo conectado, onde pessoas podem trabalhar de diversos lugares, parece lógico que a aposta não será mais vender apartamentos e casas por meio de financiamentos que duram trinta anos. “A dinâmica na vida das pessoas está mais intensa. O consumidor quer que a comida chegue a ele. Ele não tem tempo mais de se deslocar até ela”, diz Luiz Antonio França, presidente da Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc). “Toda essa modernização, essa mudança de comportamento, vai ser aplicada aos imóveis.”
A inovação nasce numa hora em que as perspectivas para o setor, repita-se, são favoráveis. A construção foi a área que mais se beneficiou da retomada econômica em 2019 e teve crescimento, até o terceiro trimestre, de 4,4%, muito à frente do PIB do país, que subiu 1,6%. Para 2020, a expectativa também é boa. O Brasil deverá crescer próximo de 2,5%. Já a construção deverá ter uma alta superior a 3%. Apesar disso, ainda está longe de se resolver um problema-chave. No país há um déficit habitacional que aflige 7,8 milhões de famílias, de acordo com a Fundação Getulio Vargas. A evolução do mercado imobiliário, todavia, não está focada nesse público. Poucas das novas residências desse sistema disruptivo chegarão à tal fatia da população, uma vez que a diária de um apartamento pode custar 187 reais, como no caso do Itaim, na zona nobre da capital paulista. Será preciso mais inovação para tapar esse buraco.
Com reportagem de Felipe Mendes
Publicado em VEJA de 5 de fevereiro de 2020, edição nº 2672