Vastamente debatida planeta afora, a legalização da maconha — ora para fins medicinais, ora para uso recreativo — já é realidade em um amplo leque de países em que o mercado de Cannabis vai ganhando escala com velocidade. Em nenhum lugar ele é tão profícuo quanto na Califórnia, onde ultrapassou a próspera indústria de vinho e acaba de receber um empurrão adicional: uma lei recém-aprovada no mais progressista de todos os estados americanos liberou os coffee shops ao estilo da pioneira Amsterdã, na Holanda. Ali, desde os anos 1970 pode-se consumir a droga livremente em cafés espalhados por toda a cidade. É um novo degrau em um setor agora vistoso na paisagem californiana, berço de históricas marchas em prol dos direitos civis, com butiques cada vez mais moderninhas e repletas de opção. “Todas as pesquisas revelam que os californianos querem consumir Cannabis socialmente, na legalidade e de modo seguro”, disse a VEJA Matt Haney, autor do projeto de lei dos coffee shops, previsto para entrar em vigor em janeiro de 2024.
Não é uma discussão trivial nem de resposta fácil. As pesquisas científicas seguem alertando sobre os danos potenciais à saúde causados pelo uso intensivo de maconha — e mesmo lugares em que o consumo dela é legalizado martelam nesse ponto. A questão essencial é que, ao retirar a droga da esfera criminal, a compra na mão de traficantes vai cedendo espaço às lojas certificadas, um passo favorável à queda da criminalidade. Aconteceu na própria Califórnia, a primeira região do país a dar o aval ao uso recreativo, em 2016, uma década depois de abraçar o consumo medicinal. Os crimes violentos ali caíram 15% após a medida. Os caminhos para a liberação, ainda envoltos em dúvidas, estão sendo testados e lapidados. Mesmo Amsterdã, um caso exemplar, vem revendo aspectos da política implantada no passado, já que virou uma espécie de Disney dessa e de outras drogas liberadas, acumulando os efeitos deletérios de não ter demarcado limites para usuários vindos de todo o canto.
A Califórnia está justamente atenta ao modelo holandês, impondo normas com o objetivo de assimilar a droga em sociedade sem prejudicá-la, este um desafio também enfrentado em países como Uruguai, Canadá, México e tantos outros. No rol de restrições californianas, não pode haver concentração de pontos de venda de Cannabis num mesmo quarteirão e eles devem se situar a pelo menos 300 metros de escolas. É também ilegal consumir a droga no meio da rua. Há mais de 1 000 butiques registradas na Califórnia, sendo São Francisco, a capital do Vale do Silício, sede da maioria delas. “Boa parte das lojas segue o conceito de open shopping, em que você pode circular à vontade, manusear os produtos e colocá-los em uma cesta, modelo que ajuda a remover o estigma”, explica Robbi Ranin, à frente da Sparc, rede de lojas onde tudo é feito de maconha: flores, extrato, tinturas e até camisetas de cânhamo, variedade de Cannabis empregada em itens têxteis.
Lojas como a MadMen e a Cookies, que exibem estilo clean e organizado semelhante ao dos templos de consumo da tecnologia, como as lojas da Apple, oferecem prateleiras ultravariadas. Cada cliente pode escolher a mistura que quiser, em blends personalizados de ervas que dão graça à brincadeira e agitam as vendas. Enquanto uma subespécie é propagandeada como energizante e estimuladora da criatividade, outras são anunciadas como combatedoras de estresse ou da falta de sono e promotoras do alívio de dores — nem tudo cientificamente comprovado. Há cerca de 700 variedades à disposição, todas de nomes que impulsionam a compra: Blue Dream (sonho azul) e Wedding Cake (bolo de casamento), entre muitas mais. Também os preços são para todos os bolsos. Um grama parte de 5 dólares, mas pode ultrapassar os 100.
Vários países que legalizaram o uso recreativo da Cannabis não são produtores, criando contradições, a exemplo do que se vê em Amsterdã. Como o plantio por lá é proibido, os traficantes aportam na cidade dos belos canais para comercializar a carga, elevando a criminalidade, e uma parcela acaba ainda por se estabelecer na também lucrativa produção de drogas sintéticas. Nas engrenagens da indústria californiana, um naco relevante dos 6 bilhões de dólares contabilizados anualmente vem de fazendas legalizadas, que substituíram as remessas que antes ingressavam de forma escusa pelas fronteiras vindas sobretudo do México. No Brasil, a discussão se encontra em fase bem anterior. Como ocorre em outros 41 países, aqui o uso da Cannabis como medicamento é autorizado — e as atenções estão agora voltadas para o Supremo Tribunal Federal (STF), onde a descriminalização do porte de maconha está sendo avaliada pela Corte. Que a experiência internacional sirva para iluminar matéria tão complexa — e que não seja só fumaça.
Publicado em VEJA de 6 de outubro de 2023, edição nº 2862