Camilo Santana tem desafio de replicar nacionalmente sucesso do Ceará
Com a chegada da equipe do ex-governador ao MEC, o bom exemplo cearense na Educação ganha fôlego para reverberar em outros cantos
Um visitante desavisado que passar por Ararendá, município cearense próximo à divisa com o Piauí, logo pensará estar em mais uma das paupérrimas aglomerações urbanas do sertão dos Crateús. Mas é nessa cidade de 11 000 habitantes, de casas simples e gente humilde, que se desenrola uma notável revolução no normalmente castigado ensino público. Os frutos são palpáveis: Ararendá ocupa o primeiro lugar no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica, aplicado pelo Ministério da Educação para medir o desempenho dos alunos de colégios estaduais e municipais. O sucesso acadêmico que brota em uma das regiões mais carentes do semiárido nordestino não é um daqueles casos isolados, produto de circunstâncias especiais. A qualidade brota de um sistema bem maior, que alçou o Ceará ao topo do ranking da educação entre todos os estados nos anos iniciais do nível fundamental e emplacou 87 de suas escolas entre as 100 melhores brasileiras.
Agora, o bom exemplo de lá ganha fôlego para reverberar em outros cantos, com a chegada ao comando do MEC do ex-governador Camilo Santana, acompanhado de outros três quadros da cena cearense, entre eles Izolda Cela, que ajudou a dar a guinada tão merecedora de atenção em um país ainda atolado em notas ruins. Ao assumir a pasta, o novo ministro deixou claro que pretende concentrar esforços na educação básica, dos primeiros anos ao nível médio, com ênfase na alfabetização, justamente onde o Ceará iniciou o processo que o guindou da 18ª posição em 2005 para a dianteira nacional em 2021.
Replicar na complexa imensidão do território brasileiro práticas que prosperaram em seu estado, porém, não será tarefa fácil. Com poucos dias de estrada na Esplanada, Camilo já se enroscou em um feroz embate com os municípios depois de conceder aumento de quase 15% aos professores — são eles, afinal, que pagam a fatura, de 19,4 bilhões de reais por ano aos docentes. Prefeitos começaram então a disparar contra o MEC, argumentando que a decisão não está amparada por lei, o que é verdade. Não há hoje em vigor nenhum texto que estabeleça um critério de aumento para o salário de mestres, daí ter sido necessária a edição de uma portaria no ministério, sustentada em um parecer da Advocacia-Geral da União (AGU). Ninguém discorda de que é meritório valorizar profissionais vitais à engrenagem da educação — a questão é saber navegar em uma realidade de cofres apertados para todos, o que exige fazer muita conta e muita costura política. Disso dependerá o sucesso de um projeto que parte de bons alicerces.
Como ocorre com os bem-sucedidos modelos de ensino no mundo, da Finlândia à Coreia do Sul, o Ceará não inventou a roda, mas implantou de forma disciplinada e contínua uma cartilha em que os mestres são treinados e prestigiados, as notas dos alunos são monitoradas e experiências exitosas são replicadas dentro da própria rede, onde as escolas se guiam por metas. O prometido foco na alfabetização, como anunciou o ministro, faz sentido, já que o acúmulo de conhecimento é como a construção de um prédio — sem bases sólidas, o resto se torna frágil. Quinze anos atrás, apenas dois dos 184 municípios cearenses não patinavam em níveis críticos de analfabetismo. A rota do fracasso foi interrompida quando se decidiu pela implantação do Programa de Alfabetização na Idade Certa, que havia sido testado em Sobral, vitrine vistosa pelo pioneirismo na adoção de eficazes iniciativas. “Eles produziram no Ceará um currículo claro e bem organizado, capacitando professores e os subsidiando com material pensado para as reais necessidades das crianças”, diz Claudia Costin, diretora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais da FGV.
Na educação, uma tentação muito comum é que o governante da vez dissolva os projetos do antecessor, algo altamente contraindicado numa área na qual só se veem resultados relevantes em horizontes dilatados. Pois uma das chaves para entender o caso cearense é a constância nas políticas, um ciclo iniciado com o ex-governador Cid Gomes (então no PSB) e seguido pela dupla Camilo (PT) e Izolda (então no PDT), egressa da Secretaria de Educação de Sobral para a do estado e, hoje, secretária-executiva do MEC. Conhecida como habilidosa articuladora, inclusive por adversários, Izolda se mexeu para estabelecer um elo firme com as redes municipais — em geral, cada qual envereda por uma direção, sem uma bússola que auxilie na busca da excelência. Houve, no caminho, uma poderosa ferramenta financeira: no Ceará, 18% da parcela do ICMS destinada aos municípios é atrelada a seu desempenho educacional. Prefeitos que avançam nos indicadores recebem uma cota maior da verba, livre de qualquer carimbo. “O ensino acabou virando uma prioridade para valer. Teve prefeito que passou a participar de todas as reuniões nas escolas”, conta Eliana Estrela, atual secretária de Educação.
Não é sempre que dinheiro surte o efeito esperado na sala de aula. Os famosos levantamentos da OCDE, que reúne os países mais desenvolvidos, são enfáticos ao mostrar que várias nações que canalizam somas vultosas para a educação não primam por um desempenho exemplar, enquanto outras vão longe com muito menos. O reforço no cofre costuma trazer resultados auspiciosos quando associado a um plano de voo. Ocorreu no Ceará, onde os recursos do ICMS vieram aliados a um robusto auxílio técnico, com diretorias de ensino monitorando as cidades de perto e oferecendo treinamento regular a professores e gestores, um diferencial e tanto. Detalhe: as tradicionais indicações políticas para diretores e coordenadores pedagógicos nas escolas foram cedendo espaço a um sistema único fincado em avaliações e critérios técnicos.
Na comparação com outros países, o Brasil ainda está no pelotão de trás, mas, como mostra o caso cearense, a qualidade também viceja por aqui. O problema é que os bons exemplos raramente servem de inspiração a cidades e estados vizinhos. O modelo do Ceará tenta romper com isso, ao incentivar que as escolas de maior destaque apoiem as que não obtiveram desempenho satisfatório — e ambas recebem mais recursos, umas para subir no ranking, outras para continuar no rumo certo. Estados como Espírito Santo e Maranhão implementaram programas semelhantes. Pernambuco, por sua vez, importou o plano de alfabetização do Ceará e, em sentido inverso, exportou para lá fundamentos que deram certo no ensino médio, numa troca boa para todos. “Não basta anunciar uma medida e ficar esperando o resultado, mas implantar todos os dias uma política educacional de qualidade”, enfatiza Priscila Cruz, presidente da ONG Todos pela Educação. Está mais do que na hora de o Brasil parar de agir como aluno repetente e, com responsabilidade fiscal, olhar com atenção para lugares que fazem a lição de casa.
Publicado em VEJA de 25 de janeiro de 2023, edição nº 2825