Uma questão existencial vive a rondar os pais: como preencher o tempo dos filhos de modo a ajudá-los a escalar os degraus do desenvolvimento? O risco nesse campo delicado é descambar para o excesso, seja promovendo uma agenda atribulada de atividades, seja equipando a criança com todo tipo de tela — TV, computador, celular. Pois numa das mais antigas tradições da humanidade, a contação de histórias de uma geração à outra, reside uma profícua trilha para o estímulo do raciocínio e da imaginação, em que a garotada é lançada para universos onde descobre palavras, associa ideias e acumula saber. A ciência, que vinha desbravando havia algum tempo os benefícios da leitura em família desde os primeiros anos de vida, deu um novo salto de conhecimento ao observar a efervescência do cérebro infantil ao ouvir o enredo de um bom livro.
Um dos mais abrangentes estudos nessa linha, conduzido por um grupo do hospital de Cincinnati, nos Estados Unidos, resolveu cutucar o problema de um ângulo que esclarece quais incentivos, afinal, mais provocam positivamente a mente da criança. O grupo entre 4 e 5 anos foi monitorado por aparelhos de ressonância magnética em três situações distintas, nas quais era apresentado a uma mesma história gravada: primeiro apenas escutava a fita, depois junto com ela assistia à animação da história na TV e, por fim, as imagens eram projetadas sem movimento nenhum, simulando um livro. Os pesquisadores queriam saber em que cenário as cinco regiões fundamentais do cérebro mais se conectavam. A resposta foi incisiva: enquanto a animação agita em demasia a mente, freando a ligação entre os neurônios, e o áudio puro e simples pouco a ativa, a imagem parada causa uma pequena revolução. “Isso ocorre porque obriga a criança a exercitar a imaginação e, assim, ela vai construindo uma forte conexão entre os neurônios, formando uma rede”, explica o neurocientista Ariovaldo da Silva Júnior, da Universidade Federal de Minas Gerais.
A leitura feita pelos pais funciona como uma alavanca potente, especialmente no começo da vida. Na fase que vai dos primeiros meses à alfabetização (quando a criança já ganha autonomia para as próprias aventuras literárias), o cérebro realiza sinapses como em nenhuma outra etapa. Por isso, costuma ser comparado a uma esponja, tamanha sua capacidade de absorver estímulos — e é aí que os livros desempenham função valiosa. “Os estudos mostram que uma criança de 2 anos com pais que lhe contam histórias pode se desenvolver até duas vezes mais rapidamente do que aquela que não tem esse hábito”, frisa o pediatra Ricardo Halpern. Além da já verificada ampliação do repertório linguístico e da habilidade de transmitir ideias, o minileitor evolui no lado psicológico: o momento em que pais e filhos compartilham um livro tende a sedimentar os laços, ainda mais se o programa virar uma prazerosa rotina.
A Sociedade Brasileira de Pediatria passou a recomendar aos próprios médicos que receitem livros para ser devorados em família, um santo remédio para vários males. Cabe, porém, uma ponderação: que a atividade não se transforme em uma corrida maluca pela busca do ponto-final — o mais importante é o trajeto e a conversa que se desenrola a partir dele (veja o quadro). A publicitária Ludmila Abreu de Freitas, 37 anos, reserva os fins de tarde para ler para Eduardo, de 2, um pequeno tagarela. Enquanto a mãe conta a história, o menino repete palavras e gosta de tratar das emoções vividas pelos personagens. “Sinto que ele expandiu o vocabulário, pronuncia palavras difíceis corretamente e constrói frases com destreza”, orgulha-se a publicitária. São ganhos que se desdobram por toda a jornada escolar, já que formam uma base para o pensamento lógico e a compreensão de textos. Como no ciclo virtuoso do aprendizado uma coisa leva à outra, a neuropsicóloga Rochele Paz Fonseca, da PUC-RS, atenta para resultados menos previsíveis e duradouros da leitura precoce: “Além de tirar notas até 15% mais altas, as crianças que tomam contato cedo com os livros se convertem em adultos mais capazes de administrar o tempo e com melhor saúde mental”, diz.
A leitura é uma extraordinária mola para abrir as portas do saber e, no caso de crianças mais pobres, pode ser a única verdadeiramente proveitosa. “Um caminho que já se revelou bem-sucedido é treinar os pais dessa turma para ler aos filhos”, ressalta João Batista Araujo e Oliveira, presidente do Instituto Alfa e Beto, que implantou um programa dessa natureza em Roraima e aferiu um avanço significativo em testes de Q.I. Mãe de duas meninas, de 5 e 8 anos, a empresária Fernanda Pina, 37, se empenha em encontrar títulos que agradem às duas e avalia que ambas afiaram o português. “A mais velha acaba puxando a caçula”, resume. De livro em livro, vai se formando uma bem-vinda geração de leitores, sem a qual nenhum país pode almejar virar a página do desenvolvimento.
Publicado em VEJA de 30 de setembro de 2020, edição nº 2706