O apagão vergonhoso na educação brasileira
Em nome da pureza ideológica (e da reeleição de Bolsonaro), o MEC e outros órgãos inibem a divulgação de dados que norteiam as políticas públicas
A educação no Brasil padeceu durante décadas de um problema de fundo: carência de dados essenciais para a elaboração de políticas públicas. O quadro começou a mudar na gestão de Fernando Henrique Cardoso, nos anos 1990, quando foram criados mecanismos de avaliação — da escola, do aprendizado, dos alunos, dos professores — destinados a medir a qualidade do ensino no país. Os governos seguintes, de Lula, Dilma Rousseff e Michel Temer, não só mantiveram a abordagem como a aprimoraram, redesenhando testes e desenvolvendo índices que pudessem servir de parâmetro para estados e municípios. Infelizmente, na Presidência de Jair Bolsonaro, a fórmula desandou. Sob ordens expressas do Planalto de apagar o que considera um viés excessivamente ideológico no setor e inimigo das más notícias, o atual ministro da Educação, Milton Ribeiro, e os dois que o antecederam trataram de atravancar e inibir o levantamento e a divulgação de informações vitais para a garantia de um ensino de alto nível.
Nos bastidores do MEC é dado como certo que o principal indicador da qualidade da educação no Brasil, o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), não será divulgado neste ano. A decisão foi tomada por um grupo de trabalho formado justamente para repensar o Ideb, que assim saiu da órbita do Inep, o órgão responsável pela invenção e cálculo do índice, e foi levado para dentro do ministério. Enquanto servidores batiam o pé para manter a metodologia vigente e impedir mudanças na série histórica, iniciada em 2007, gestores municipais e estaduais se empenhavam em camuflar a notícia ruim em ano eleitoral. E o Planalto aderiu à operação abafa.
A meta nacional estabelecida para a educação era alcançar nota 6 até 2022, o que colocaria o Brasil na média dos países desenvolvidos. Antes da pandemia, só os anos iniciais do ensino fundamental chegavam perto desse índice. O fechamento das escolas e o consequente atraso das matérias tornaram a missão, que já era difícil, impossível. Na verdade, é muito provável que o patamar tenha baixado. Melhor, portanto, nem divulgar o Ideb — um apelo, aliás, vindo de várias partes. “Defendemos que o resultado não seja considerado para natureza política, pedagógica ou financeira porque ele não retrata um período de normalidade”, diz Vitor de Angelo, presidente do Conselho Nacional dos Secretários de Educação, o Consed.
Outro empurrão para atrapalhar a tabulação dos dados oficiais foi o fraco comparecimento nas provas do Saeb, o Sistema da Avaliação da Educação Básica, essencial na composição do Ideb. Problemas a rodo afloraram na aplicação do teste. Estados e municípios não fizeram as devidas convocações, entidades ligadas à educação propuseram que fosse aferida apenas uma amostra, e não o total de alunos, e técnicos do Inep sugeriram inclusive que o Saeb fosse adiado. O governo insistiu e produziu uma avaliação capenga, que não diz ao certo qual o impacto da Covid-19 na aprendizagem. “A ausência de dados é um problema grave”, diz Priscila Cruz, presidente executiva do movimento Todos pela Educação. “Só conseguiremos recuperar o tempo perdido se estabelecermos um novo marco zero pós-pandemia, com parâmetros confiáveis do desempenho dos alunos.” A intenção de escamotear os números da educação ficou evidente em fevereiro, quando o Inep proibiu o acesso aos chamados microdados, cruciais para a execução de pesquisas acadêmicas e políticas públicas, relativos ao Enem 2020 e à edição de 2021 do Censo Escolar da Educação Básica, Durante meses, técnicos contrários à medida apresentaram ofícios e pareceres propondo “soluções que possibilitem o retorno da divulgação de microdados públicos com segurança”, conforme consta de um dos seis documentos obtidos por VEJA que dormem na gaveta da direção do Inep. “Ignoraram totalmente as recomendações”, diz um funcionário.
Estudos produzidos pelo instituto também estão na mira do governo. Em março passado, uma pesquisa apontando resultados positivos do programa Alfabetização na Idade Certa, bandeira do governo de Dilma, foi proibida de ser publicada. Mais recentemente, o MEC convidou integrantes da Campanha Nacional pelo Direito à Educação a participar de um livro sobre o custo aluno versus qualidade e, em duas reuniões tensas, definiu antecipadamente como determinados temas deveriam ser abordados. “Funcionários disseram existir uma pressão constante vinda do MEC”, conta Daniel Cara, ex-coordenador da Campanha. No Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, o Ipea, exige-se autorização prévia do comando do órgão para publicar qualquer material. “Passamos a viver sob uma cultura de autocensura”, resume o pesquisador Fernando Gaiger. No IBGE, até o Censo Demográfico, cujo orçamento foi reduzido de 3,1 bilhões para 2,3 bilhões de reais, está sendo realizado com um questionário de 25 perguntas, em vez das 46 de costume. Não faltam alertas de que o apagão de dados anda em marcha nas várias esferas e pavimenta uma trilha ruim: o retrocesso norteado por interesses alheios ao que importa para o país dar um salto. É lamentável.
Publicado em VEJA de 16 de março de 2022, edição nº 2780